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Estado de Minas CINEMA

Filme "Carvão" faz um retrato do desmanche moral na vida interiorana

Maeve Jinkings tem ótima atuação como protagonista do longa de estreia de Carolina Markowicz, mas ideias preconcebidas e conclusões forçadas prejudicam o filme


07/11/2022 04:00 - atualizado 06/11/2022 21:48

A atriz Maeve Jinkings, na porta de um casebre de madeira, em cena de Carvão
Uma carvoaria na qual trabalha o marido de Irene é cenário decisivo na trama do filme (foto: Pandora/Divulgação)

Bons filmes são, habitualmente, aqueles em que o cineasta descobre um mundo ao mesmo tempo em que o desvela. Ele não o controla, são as coisas que conduzem o filme.

Carolina Markowicz parece fazer o caminho oposto em "Carvão", sua estreia no longa-metragem. O mundo em que se insere é interiorano, caipira, rural. É o de Irene, mulher que leva sua vida difícil ao lado do filho e do marido, que se encarrega ou finge que se encarrega de uma carvoaria. A maior parte do tempo ele bebe ou dorme.

Irene, papel de Maeve Jinkings, tem um problema adicional – seu velho pai vegeta em um leito desde que teve um derrame. Essa vida familiar ingrata e decente se deixa abalar desde que uma enfermeira (ou algo assim) do posto de saúde do lugar sugere a ela que o leito ocupado pelo pai poderia muito bem ser ocupado por um inquilino. Bastaria o homem morrer.

A ideia é a primeira que costura a degeneração familiar que se seguirá. É como se o dinheiro e o mal devessem entrar juntos nessa história. Não é o dinheiro que traz o mal, ele apenas o revela, e talvez seja esse o problema do filme – tudo parece concebido para chegar a certas conclusões inevitáveis.



Mas o dinheiro que chega fácil chega, também, por meandros pouco ortodoxos. Vamos então ao mundo dos bandidos ricos, a uma casa horrivelmente decorada, onde Miguel, papel de César Bordón, é maquiado para fingir que foi baleado na testa.

Em seguida, ele é fotografado numa piscina, junto com outros homens, realmente mortos. Ou seja, a foto deve ser a prova de que ele morreu. O importante é sabermos que os bandidos de verdade vivem em mansões nababescas.

Escrúpulos

Pouco depois, é Miguel quem aparece na casa de Irene, pelas mãos da tal enfermeira, para ocupar o leito do velho, que virou carvão, quer dizer, foi jogado num forno da carvoaria. É verdade que Irene tem lá seus escrúpulos, tanto que foi perguntar ao padre local se seria a vontade de Deus ver uma pessoa viver da forma que seu pai vivia. A resposta do padre não importa – ela já sabe muito bem o que fazer.

O que se segue parece existir apenas para reforçar a catástrofe no círculo familiar. Tempos depois de abrigar o bandido, os pais serão chamados à escola local pela diretora. Souberam que ele andou comprando drogas. Obviamente, o fez a mando de Miguel.

A vida da família melhora um pouco, graças ao dinheiro do bandido. Até uma moto aparece. Não que Jairo, papel de Rômulo Braga, a utilize para alguma coisa de útil. Ele continua bebendo e dormindo, exceto quando encontra um amigo, ocasião em que sabemos que é gay.

Em poucas palavras, "Carvão" observa um mundo de hipocrisia numa habitação rural, em um pequeno município, onde a vida, longe de idílica, é pautada por certa monotonia, por valores aparentemente sólidos. A destruição moral que acompanhamos existe em função do dinheiro, mas não é determinado por ele.

Como bem lembra o padre na parábola que recita a horas tantas, o mal já estava lá. Mesmo num mundo que parece refratário a ele, estava lá. Pois a parábola trata de uma árvore que, comida por cupins, não os maldiz – eles é que permitem a ela descobrir sua verdadeira natureza.

A parábola parece dirigida diretamente a Irene, mas deixa no ar alguma dúvida. Sendo ela adepta da religião católica, a parábola é dirigida diretamente a ela? Terá ela confessado seu crime original (o parricídio não é pouca coisa)? Ou a parábola foi escolhida ao acaso pelo padre, embora caia como uma luva para demonstrar a frágil natureza de que é feito o humano?

Seja como for, é uma ponta que fica solta no filme, assim como o lado gay da história, que entra ali a fórceps, sem outro motivo aparente que não o de demonstrar que mesmo o mais profundo interior não tem nada da inocência mazzaropiana.

A vida familiar, tão apregoada nos dias que correm como lugar da união, dos valores sadios e tal e coisa, não é senão uma aparência, a julgar por "Carvão".

Não é a primeira vez que isso acontece. O que distingue "Carvão" é que o filme não chega a essa conclusão. É como se ele partisse de um pressuposto e, vindo daí, encaixasse os acontecimentos de maneira a chegar a essa conclusão. Esse discurso ideológico apaga virtudes que o filme poderia ter, como a presença forte de Maeve Jinkings como Irene.

No geral, "Carvão" permitirá uma comparação saudável com "Meus pequenos amores", de Jean Eustache, que numa só tacada nos mostra a modorra da vida interiorana e a intensa agitação interior que nele existe.

Talvez "Carvão" buscasse isso, mas ali onde Eustache vai como que descobrindo a agitação interior de seus personagens, o filme de Carolina Markowicz se perde ao construir a existência dessa família caipira sobre ideias preconcebidas a respeito da família, do dinheiro e da alma humana. 

“CARVÃO”
(Brasil, Argentina, 2022, 108min) Direção: Carolina Markowicz. Com Maeve Jinkings, Cesar Bordon, Jean Costa, Romulo Braga, Camila Mardila, Pedro Wagner. Classificação 18 anos. Em cartaz no UNA Cine Belas Artes (Sala 3, 14h e 19h40) e no Centro Cultural Unimed-BH Minas (Sala 2, 18h30)


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