"Um colecionador de formas inusitadas, que eu mesmo crio." Assim se define o artista Ricardo Carvão Levy. Nascido em 1949, em Belém (PA), ele se mudou com a família para a capital mineira, em 1964. Aqui começou a desenvolver o que seria uma trajetória expressiva, com um trabalho singular de esculturas de grandes proporções, no qual emprega diferentes materiais.
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"Os triângulos formam duas setas. A que se direciona para o céu é a energia terrena, a fé, e a virada para a terra é a energia celestial, a bênção divina. O paralelogramo é a somatória das duas energias – entre as setas, ele surge. Com o elo entre fé e bênção, nasce a paz", explica.
É como se a obra, feita por encomenda depois de seleção em um concurso, do qual participaram Amilcar de Castro, Franz Weissmann e Bruno Giorgi, devolvesse à Serra do Curral e à natureza parte do minério dali extraído. O trabalho é hoje um dos grandes símbolos da cidade.
Após visita técnica à Praça do Papa e conversa entre o artista e a secretária de Cultura de Belo Horizonte, Eliane Parreiras, ficou decidido recentemente o início de um projeto de restauração do “Monumento à paz”, assim como intervenções para revitalização geral da praça.
Na Praça da Liberdade, o monumento “Liberdade”, de 1991, é outro marco. Sobre uma base em rocha hematita, o minério em estado bruto, se incrusta a escultura em minério trabalhado industrial e artisticamente.
A obra foi instalada no espaço também depois de vencer um concurso. “Voo”, no Aeroporto Internacional Tancredo Neves, de 1984, “Monumento do milênio”, no Belvedere, 2000, e o “Monumento à visão”, no Mirante da Cidade, no Mangabeiras, de 2017, são mais exemplos.
A obra foi instalada no espaço também depois de vencer um concurso. “Voo”, no Aeroporto Internacional Tancredo Neves, de 1984, “Monumento do milênio”, no Belvedere, 2000, e o “Monumento à visão”, no Mirante da Cidade, no Mangabeiras, de 2017, são mais exemplos.
Para 2022, as celebrações da trajetória de Ricardo Carvão Levy na arte serão marcadas ainda com a instalação de sua obra mais atual, o “Monumento à vida”, no Hangar – Centro de Convenções da Amazônia, em sua terra natal, como um presente do governo do Pará à cidade.
Imersão
O artista realizou sua primeira exposição individual em 1979, apontada pela crítica como a melhor exposição daquele ano, mas essa história começa um pouco antes, no início da década de 1970, quando, durante sete anos, viveu um tempo de imersão na elaboração de sua produção artística que seria, depois, levada a público."Vivemos em um mundo conturbado, somos bombardeados todos os dias por notícias pesadas, de corrupção, violência, guerra. Procurei construir uma obra que fosse um bálsamo para tudo isso. Que propiciasse momentos de deleite, de paz, de boas energias e contemplação", diz.
O artista cita sua atração pela arquitetura e conta que, antes de prestar vestibular, resolveu conhecer outras culturas. Em 1972, viajou ao México, onde teve contato com a arte pré-colombiana, pela qual foi profundamente tocado.
"Quando visitei o Museu Nacional de Antropologia, ficava ali da hora em que abria até fechar. Chegava perto de uma obra e arrepiava até as canelas. Comecei a refletir sobre isso. Decidi não mais ir para o ambiente acadêmico. Escolhi o aprendizado sobre a forma, mas não de maneira convencional, e sim como alimento para o espírito."
Admirado com as criações dos astecas, maias e de outros povos das Américas do Norte e Central, nesse ponto, sentiu que seu caminho profissional seria dedicado ao tridimensional, iniciando, ao retornar ao Brasil, um estudo autodidata. Ele acredita que foi a partir dessa incursão que decidiu se dedicar de verdade à arte.
Possibilidades
"Nos anos 1970, quando se pensava em escultura, vinha logo a ligação com metal, pedra e madeira, os materiais mais usados. Procurei abrir o leque de possibilidades." Por sete anos, se debruçou em um rigoroso recolhimento sobre a geometria e a matemática, concebendo inúmeros trabalhos utilizando a sola de couro, procurando valorizar o material inapto e inóspito.Chegou a fazer 600 esculturas em couro, entre peças de até 1,2 metro de altura. Realizou então sua primeira exposição individual na Grande Galeria do Palácio das Artes, em 1979, apresentando 147 criações desse conjunto.
Mesmo com o pendor para a originalidade, a partir de um olhar diferenciado para trabalhar o couro, Ricardo percebeu que essas obras se restringiam a ambientes internos, já que não eram resistentes a intempéries.
"Tinha o desejo de ver minhas peças ao ar livre, em praças, parques, jardins. Que pudessem ser apreciadas por qualquer pessoa, independentemente de classe social ou nível cultural. Em museus e galerias, a arte fica restrita", diz. É aí que, ainda em 1979, Ricardo Carvão encerra o ciclo do couro e dá início aos trabalhos com diversas matérias-primas, incluindo a que se tornou a principal até hoje: o aço.
Cerâmica
Da infância, Ricardo Carvão lembra momentos bons e uma vida saudável. Sempre em proximidade com a criatividade típica do Norte do Brasil, conviveu com variadas expressões artesanais, perpassando etnias como a marajoara, a tapajônica e outras mais – tudo o que podia observar pela cidade, em museus, no início encontrando muito a cerâmica, de geometria sensível, como as referências zoomorfas e antropomorfas. Além de releituras de tartarugas, do contato com amuletos, como o sapo muiraquitã, recorda-se também de uma rica oferta de utensílios e brinquedos em miriti, uma madeira macia e leve.Quando chegou a Belo Horizonte, aos 15 anos, foi impactado pela imagem de Aarão Reis, engenheiro que chefiou a construção da capital e que foi seu conterrâneo. Diante do busto colocado na Praça Sete, jurou que deixaria algo de importante para o lugar que àquele instante o acolhia.
Na década de 1960, por um tempo procurando ter autonomia, passou a fazer artesanato, o que acabou mais tarde contribuindo para o caminho até a escultura. Certa vez, recebeu um pedido para produzir uma caixa para ser porta-joias. Quando a entregou para o cliente, ele apontou uma única falha: "Não tem sua assinatura". Em sua opinião, não se tratava de um simples objeto, e sim uma obra de arte.
Desafios
Em outra ocasião, enquanto estava em uma livraria em Belo Horizonte, teve um encontro inusitado com Inimá de Paula, que logo se aproximou. “‘Onde você comprou essa peça?’ me perguntou. Referia-se à minha jaqueta de couro. Disse que eu mesmo havia feito, que era artesão. Inimá franziu a testa, meio que em ar de reprovação, e retrucou: essa é uma escultura que se veste”, lembra."Gosto muito de desafios, de quebrar regras estabelecidas até por mim mesmo. Procuro diversificar, não me prender a rótulos ou a um determinado segmento. Não fazer nada que seja cristalizado", afirma.
Atualmente, Ricardo Carvão assina monumentos espalhados pelos quatro cantos, entre praças, galerias e museus, e perdeu as contas de quantas peças já fez, entre obras maiores e de dimensões mais reduzidas. O ponto de partida é enaltecer a energia do material através da forma.
Ele elabora um trabalho de cunho construtivista, com valorização das formas geométricas, submetendo-as a recortes e dobraduras. O acervo surpreende tanto em quantidade como em diversidade. Ricardo Carvão se considera um artista que diversifica material e/ou estilo e/ou técnica.
"Ora utilizo máquinas sofisticadas, corte a laser, ora o trabalho é rudimentar, sem energia elétrica, com alicate, formão, tesoura... Muitas vezes, atuo com aço, alumínio, cobre, e em outros momentos passo para materiais reutilizáveis, como uma lata amassada, um recipiente plástico, um tubo de PVC, restos de metalurgia, etc.”, cita.
“Em relação a estilos, exploro o abstrato com formas geométricas simplesmente, minimalistas, com apenas duas dobras, até peças cheias de detalhes, figurativas, com muitas soldas, muitos cortes. Estudiosos que conheceram meu trabalho já disseram que parece 12 artistas em um só.”
Acervo
Estima-se que Ricardo Carvão seja um dos artistas brasileiros com o maior acervo conservado consigo mesmo. Boa parte das peças está reunida na residência do artista, em Belo Horizonte. Ali, o espaço, que carinhosamente chama Ninho, é uma atração em particular. O artista deposita, dia após dia, nas paredes, no teto, no chão, nos móveis, nos jardins um caleidoscópio de possibilidades, formas, pesquisas, muitas vezes feitas com objetos cotidianos, como um simples ralador ou uma escova de dentes. "Eu me considero um colecionador de esculturas – as minhas."
Ricardo Carvão demonstra gratidão pelo que conseguiu concretizar e a satisfação de ver suas obras espalhadas por vários locais da cidade e fora dela. "Tudo fruto de um grande sonho, muita dedicação e perseverança. Para mim, a arte significa vida. É amor."