Cada vez mais orientada por múltiplos olhares, a produção documental no Brasil e no mundo deu um salto ao longo das últimas duas décadas e meia. Nesse período, o Forumdoc.bh – Festival do Filme Documentário e Etnográfico, Fórum de Antropologia e Cinema, buscou acompanhar e ressaltar essa evolução. Na próxima quinta-feira (10/11), o festival abre sua 26ª edição, com programação que segue até o dia 20/11.
Passado o momento crítico da pandemia, o Forumdoc.bh retorna ao formato presencial, com sessões no Cine Humberto Mauro e no Cine Santa Tereza. Uma seleção de 20 filmes da Mostra Contemporânea Brasileira – a que reúne o maior número de títulos do evento, 35 ao todo – estará disponível também no formato on-line.
A programação completa conta com a exibição de 65 filmes. Além da Mostra Contemporânea Brasileira, as obras estão divididas entre a Mostra Imagens Indígenas do Sul e do Norte: Cinemas Yanomami-Inuit e as Sessões Especiais.
A primeira é composta por 18 títulos que propõem uma confluência entre os cinemas realizados pelos povos Yanomami, da Amazônia; e os Inuit, originários do Ártico. A segunda apresenta 12 títulos selecionados por associarem a pesquisa em linguagem documental às questões da atualidade, abordando temáticas como as retomadas indígenas no audiovisual e filmes de caráter etnográfico e político.
Além dessas três mostras, o Forumdoc.br 2022 contempla, em sua programação, uma homenagem ao documentarista e crítico de cinema francês Jean-Louis Comolli – figura intrinsecamente ligada à história do festival, e a Jean-Luc Godard, diretor que revolucionou a linguagem do cinema e a relação entre documentário e ficção. Ambos morreram neste ano.
A abertura do Forumdoc.bh 2022, no Cine Humberto Mauro, será com a exibição comentada do filme “Mato seco em chamas”, coprodução entre Brasil e Portugal, dirigida por Adirley Queirós e Joana Pimenta, com a presença dos diretores e da montadora Cristina Amaral.
Outras ações
A programação abarca, ainda, a realização do seminário “Imagens indígenas do Sul e do Norte: cinemas Yanomami-Inuit”; masterclass com os diretores Sylvain George, Adirley Queirós e Joana Pimenta, sobre os processos de realização de seus trabalhos mais recentes; e o lançamento dos livros “Sob os tempos do equinócio”, de Eduardo Góes Neves, e “O sorriso de Nanook – Ensaios de antropologia e cinema”, de Marcelo Antônio Gonçalves.
Organizadora e curadora do Forumdoc.bh, Júnia Torres destaca que a seleção dos títulos que compõem a programação deste ano, bem como a escolha de “Mato seco em chamas” para a sessão de abertura, se relacionam precisamente com a revolução da linguagem cinematográfica documental a partir do final dos anos 1990.
“A gente percebe uma espécie de apropriação, uma virada na autoria, com um deslocamento do protagonismo na realização cinematográfica no Brasil e no mundo. Trata-se de acompanhar esses sujeitos que estão produzindo fora dos grandes centros e que vêm se expressar por meio do cinema”, aponta.
Um dos curadores da Mostra Contemporânea Brasileira, Paulo Maia reforça que a diversificação do cinema documental produzido no país ao longo dos últimos 25 anos sempre embasou o Forumdoc.bh e se mostra especialmente potente nesta edição.
“É algo que tem a ver com uma retomada dos movimentos sociais, sobretudo o indígena, o negro e o LGBTQIA+, que evidenciam que a sociedade brasileira é diversa. Durante muito tempo, a gente conviveu com o mito da democracia racial, que dissolvia essa diversidade – um cenário agravado pelo fato de as políticas públicas serem voltadas só para as elites”, afirma.
"Você construir sua própria imagem é muito mais forte e significativo do que um grupo privilegiado achar que pode registrar e documentar toda a diversidade de um país como o Brasil. A multiplicação de olhares, de expressões e de formas fílmicas é que resulta nesse atual cenário que o Forumdoc.br pretende mostrar"
Júnia Torres, organizadora do Forumdoc.bh
Olhares indígenas
O curador observa que o cinema indígena, incipiente há 20 anos, hoje está consolidado, com produções incluídas na programação de diversos festivais. Da mesma forma, houveumento expressivo de mostras dedicadas exclusivamente a obras de diretores negros e também daquelas com foco na diversidade sexual.
Maia, que é professor na UFMG, destaca que são pontos de vista que estiveram tradicionalmente alijados ao longo do século passado.
“Assim como o Forumdoc.br, a própria universidade espelha um pouco essa diversidade, o que decorre, por exemplo, da adoção do sistema de cotas. Quando entrei na UFMG, era um ambiente estritamente branco, de classe média. Estamos falando de um festival de filme documentário e etnográfico, então, desde o início, a ideia da diversidade sempre foi central”, ressalta.
O cinema de Adirley Queirós é, segundo Júnia Torres, exemplar dessa nova configuração da produção de documentários no Brasil. Ela diz que o Forumdoc.bh acompanha há muito tempo o trabalho do diretor, cujas obras têm a Ceilândia, 9ª região administrativa do Distrito Federal, como palco principal.
“Mato seco em chamas” representa um outro salto na relação do documentário com a ficção, segundo a organizadora do Festival. “Ele extrapola e rompe todas essas fronteiras”, diz, destacando o fato de que o filme foi premiado nos principais festivais de cinema documentário do mundo, como o Cinéma du Réel, na França. Também integrou a programação de festivais como o de Berlim, na Alemanha, e o DocLisboa, em Portugal.
“Essas são algumas das razões que nos fizeram eleger ‘Mato seco em chamas’ como filme de abertura do Festival. Consideramos uma obra revolucionária, pela abordagem política direta, pela linguagem e por tudo o que ela traz de proposições”, diz.
A curadora credita a um conjunto de fatores a possibilidade de diversificação do cinema documental brasileiro, mas destaca especialmente as conquistas de grupos historicamente menos assistidos, graças a uma conjuntura política que vem desde a redemocratização do país, após o regime militar. “Esses sujeitos foram criando seus espaços na sociedade e, naturalmente, na esfera artística também.
Júnia chama a atenção, ainda, para a questão tecnológica e material. “Realizadores representantes dos mais diversos grupos passaram a ter acesso aos meios de produção cinematográfica, de apropriação de equipamentos, o que tem como resultado uma multiplicidade de formas de fazer. Cinema sempre foi um negócio muito caro, muito exclusivista”, observa.
Novas perspectivas
A abertura das universidades, que passaram a absorver um público mais diversificado a partir dos primeiros anos do governo Lula, no início dos anos 2000, também contribuiu para que uma série de filmes, com novas perspectivas, pudessem ser realizados por estudantes de cinema e também de outras áreas, como a antropologia, conforme aponta a organizadora do Festival.
“A gente tem com isso um espectro maior de autorrepresentação. Você construir sua própria imagem é muito mais forte e significativo do que um grupo privilegiado achar que pode registrar e documentar toda a diversidade de um país como o Brasil. A multiplicação de olhares, de expressões e de formas fílmicas é que resulta nesse atual cenário que o Forumdoc.br pretende mostrar”, destaca.
Ela considera que, atualmente, há uma revolução estética que não pode mais ser negada. “Hoje ninguém mais pode se propor a fazer documentário sem conhecer o cinema indígena ou o cinema negro que está sendo produzido no Brasil. É uma revolução estética capitaneada pela heterogeneidade de pontos de vista. São novas perspectivas.”
A Mostra Imagens Indígenas do Sul e do Norte: Cinemas Yanomami-Inuit é expressiva do que Júnia diz. Ela observa que os povos do Grande Norte (que não se limita ao Canadá) – personificados nos Inuit – e os povos do Sul – personificados nos Yanomami – têm proposto outros modelos de criar e contar suas histórias, levando em conta a sua relação com os territórios, o fazer coletivo, as tradições e o mundo ocidental.
A programação inclui o centenário filme “Nanook of the North”, de Robert Flaherty, que documenta, justamente, o modo de vida dos Inuit. A obra, além de ser a primeira realizada no Ártico, é considerada o clássico inaugural do cinema etnográfico.
“Agora, quando esse filme está fazendo 100 anos, a gente vê os Inuit, retratados lá atrás, fazendo seu próprio cinema”, diz, chamando a atenção para o fato de que são superproduções, porque contam com financiamento estatal.
Ela diz que a relação que a Mostra Imagens Indígenas do Sul e do Norte: Cinemas Yanomami-Inuit propõe está profundamente ligada a um contexto contemporâneo. “Trabalhamos, com essa mostra, as possibilidades de diálogo entre povos que são a floresta, que são o gelo, porque os modos de vida são totalmente relacionados ao ambiente, e que estão passando por essa catástrofe da crise climática. A forma como isso atinge e afeta a vida dessas pessoas é documentada por elas mesmas”, sublinha.
Realizadores em BH
Paulo Maia aponta, como grande trunfo desta edição do Fordumdoc.bh, o fato de que a maioria dos realizadores das obras que serão exibidas vai estar presente. “Em praticamente todas as sessões a gente procura separar um tempo ao final da projeção para trocar ideias com os respectivos diretores. A grande expectativa está em torno dessa retomada da presença.”
Ele destaca, também, que o catálogo do 26º Forumdoc.bh, repleto de ensaios, será disponibilizado gratuitamente impresso e em formato digital, no site do festival. “Os catálogos do Forumdoc.br são publicações que viraram referência para o campo da antropologia. São fontes de consulta preciosa. Existem teses, dissertações e monografias escritas a partir dessa mostra”, afirma.
26º FORUMDOC.BH
Festival do Filme Documentário e Etnográfico, Fórum de Antropologia e Cinema, a partir desta quinta-feira (10/11) até o dia 20/11, no Cine Humberto Mauro, do Palácio das Artes (av. Afonso Pena, 1.537, centro), Cine Santa Tereza (rua Estrela do Sul, 89, Santa Tereza) e no site https://www.forumdoc.org.br/, onde toda a programação pode ser consultada