Ricardo Daehn/Correio Braziliense
Um “conjunto orgânico de filmes”, pelo que descreve a diretora artística Sara Rocha (neta de Glauber Rocha e Helena Ignez), vai embalar a 55ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. De volta ao formato presencial, o mais antigo e combativo evento do gênero no país começa nesta segunda-feira (14/11), na capital federal.
Leia Mais
Rosi Campos é sábia cigana na série juvenil "No mundo da Luna"James Corden vê seu casamento ruir em "Vida de casal"Sequência de "Pantera Negra" dá todo o poder às mulheresFilme 'A invenção do outro' aborda saga dos indígenas isolados na AmazôniaAbertura vai "pegar fogo"
Incendiária. Assim promete ser a abertura, nesta noite, com a exibição de “Mato seco em chamas”, filme de Adirley Queirós, cineasta de Ceilândia (DF) cuja carreira está ligada à história do festival, e da portuguesa Joana Pimenta.
Na fita, há escrutínio de personagens marginalizados no cenário balizado pelo comércio ilegal de gasolina, com ampla visibilidade para as mulheres.
A dupla Bruno Victor e Marcus Azevedo, de Brasília, comparece na competitiva com o longa “Rumo”. Neste filme de concepção híbrida, desponta a discussão sobre as cotas raciais instituídas há 20 anos no país.
Recentemente à frente do longa “Enquanto estamos aqui”, codirigido com Luiz Pretti, a mineira Clarissa Campolina concorre com o filme “Canção ao longe”, que marca sua estreia na direção solo.
Na história rodada em Belo Horizonte, Jimena (Mônica Maria, estreando no cinema) é uma jovem arquiteta que vive com a mãe e a avó. Está tentando sair de casa e também romper com o pai, que, depois de uma década distante, volta a se relacionar com a filha por meio de cartas.
A partir dessa história de amadurecimento, o filme trata de questões de classe, família, tradição, raça e gênero.
Sempre lembrada pela capacidade mobilizadora, Marielle Franco se fará presente em “Mandado”, filme carioca de João Paulo Reys e Brenda Melo Moraes. A produção analisa o sistema penal por meio do exame da situação que atingiu moradores do Complexo da Maré, meses antes da Copa do Mundo de 2014.
Funai, Amazônia e Bruno
Também na linha de frente do Festival de Brasília se posiciona “A invenção do outro” (SP/AM), assinado por Bruno Jorge, que resgata o trabalho do indigenista Bruno Pereira, assassinado em junho. Centrado na atuação da Funai em 2019, o longa revela reencontros e o esplendor da Amazônia, ao abordar a interferência branca na etnia dos korubos.
Completando o time de longas selecionados para a competitiva principal, o pernambucano “Espumas ao vento”, de Taciano Valério, costura enredo sobre a expansão de templos neopentecostais ao mesmo tempo em que revela o ocaso trágico de uma trupe de artistas.
Outra seção competitiva, a Mostra Brasília, vai exibir quatro longas e oito curtas produzidos no Distrito Federal. Entre os selecionados está “O pastor e o guerrilheiro”, que marca o retorno do veterano cineasta José Eduardo Belmonte ao festival que o revelou. A produção debate os conflitos históricos e o triste legado da ditadura militar brasileira.
O diretor Felipe Gontijo apresenta “Capitão Astúcia”, aventura que une neto e avô para debater o envelhecimento. Realizador de Sobradinho, Pedro Lacerda documenta os livreiros candangos Ivan Presença e Chiquinho da UnB nos desafios impostos por novos modelos de negócio do mercado editorial em “Profissão livreiro”.
Wesley Godim fecha a seleção de longas com “Afeminadas”, documentário sobre o universo drag queen de Brasília.
Homenagens
No próximo domingo (20/11), Dia da Consciência Negra, será exibido, fora da competição, “Diálogos com Ruth de Souza”, filme de Juliana Vicente que reconsidera toda a carga cultural presente na celebração de uma das primeiras-damas do cinema brasileiro, morta em 2019.
Na sequência, haverá sessão especial do documentário “Quando a coisa vira outra”, de Márcio de Andrade, em homenagem a Vladimir Carvalho, pioneiro do cinema brasiliense.
Em tributo ao diretor Jorge Bodanzky, o festival apresenta pequena mostra com produções do homenageado. Paulista, o cineasta iniciou sua carreira na Universidade de Brasília e realizou obras junto a Hector Babenco, Antunes Filho e outros. “Iracema – Uma transa Amazônica” (1974) é o filme mais conhecido dele.
Ao longo do festival, a homenagem vai levar ao Cine Brasília produções recentes de Bodanzky: “Distopia utopia” (2020) e o inédito “Amazônia, a nova Minamata?” (2022).
Além desses, o público poderá assistir à cópia restaurada de “Compasso de espera” (1969), longa de Antunes Filho, cuja fotografia é assinada por Bodanzky.
ENTREVISTA
ADIRLEY QUEIRÓS E JOANA PIMENTA/CINEASTAS
“Fazemos política de cinema”
Há oito anos, a comoção tomou conta do Cine Brasília, palco do festival. A exibição do filme “Branco sai, preto fica” consagrou o cineasta Adirley Queirós, à frente ainda de “Era uma vez Brasília” (2017), igualmente selecionado para o evento.
Com a exibição de “Mato seco em chamas”, Adirley vê cristalizada a verve para o que chama de etnografia da ficção (mescla de documentário e ficção), na qual desponta uma representação de pessoas reais que passam a efetivar o lugar social que almejam. Em agosto, o jornal britânico “The Guardian” deu quatro estrelas para “Mato seco em chamas”.
Distopia ambientada numa Ceilândia e num Brasil dominado pela extrema direita, o filme acompanha três mulheres (Chitara, Léa e Andrea) que recolhem petróleo de oleodutos e o refinam até que se torne gasolina. O trio se transforma nas Gasolineiras das Kebradas, que, montadas em motos, agitam as ruas da cidade no entorno da capital federal.
Qual é o mérito das mulheres na trama e nos bastidores de “Mato seco em chamas”?
Joana Pimenta – Elas têm vontade de ressignificar suas memórias, suas histórias, e as trazemos para um espaço de aventura. Pensamos nas três mulheres centrais como heroínas. Propomos a lenda das Gasolineiras para elas: vamos queimar o carro da polícia, vamos tornar a Ceilândia uma nação independente, vamos comercializar o petróleo, e a gente vai tirar pessoas da prisão. As atrizes que fazem personagens são essenciais. Chitara, por exemplo, está conosco desde a liberdade da prisão (ficou sete anos presa). São mulheres que, na vida real, são incrivelmente fortes, que eu respeito muito, admiro, são incrivelmente humanas, sinceras e corajosas. Viveram vidas de muita opressão, mas não ficaram presas à opressão a que foram sujeitas. Tiram a força para se reinventar. São atrizes não profissionais que tomam o ofício por projeto de vida.
Como tem sido a trajetória do filme no exterior?
Adirley Queirós – Ele já passou por mais de 60 festivais importantes. Tenho para mim que talvez seja o brasileiro, em início de carreira, que mais participou de festivais este ano. A acolhida internacional é muito grande. Nas premiações, pela tradição histórica, por ser eixo de documentários, o prêmio do Cinéma du Réel, de Paris (foi o mais importante). Estivemos no Indie Lisboa e, primeira vez, um filme luso-brasileiro ganhou a mostra principal. As pessoas ficam impactadas pela forma do filme, e não só com a história. A estrutura, com poucos recursos e poucas pessoas, é grandiosa.
A mudança de governo, no âmbito federal, fortalece o apelo do filme?
JP – Recentemente, mostramos o filme, passada a eleição, no Forum.Doc, em Belo Horizonte, numa sessão maravilhosa, com debate longuíssimo e frutífero. A perspectiva, com a reeleição do Lula, é incrível. Mas estamos em um país dividido, e em dois extremos. Sou portuguesa, mas falo a gente. Mais importante que a eleição do Lula é o que vai ser feito por uma esquerda ou por pessoas progressistas para fazer frente à apropriação total que a direita fez das narrativas populares. Se não houver essa capacidade de reinvenção de progressistas brasileiros, daqui a quatro anos não haverá Lula. Fico muito feliz, e tenho orgulho enorme de trabalhar no Brasil. Agora, o relógio foi acionado: temos quatro anos cruciais pela frente.
O filme tem amplo teor político?
AQ – Política, em filme, tem sempre. Está no modelo de produção, na forma como a gente faz filmes. É extremamente político ter as pessoas com quem trabalhamos no espaço em que a gente trabalha, no local em que filmamos. O político está aí mais que no teor político-partidário. Há a política de território também. Ceilândia é transformada no imaginário das pessoas. Fazemos, principalmente, política de cinema, mesmo porque se fazemos com dinheiro do Estado, é importante retornar essa política em forma de economia e de distribuição de renda.