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Estado de Minas CINEMA

Filmes do Festival de Brasília abordam impasses do Brasil

Racismo, venda ilegal de gasolina, execução de indigenistas, violência na periferia e ditadura militar estarão na tela a partir desta segunda-feira (14/11)


14/11/2022 04:00 - atualizado 14/11/2022 02:46

Indigenista Bruno Pereira em cena do filme A invenção do outro
O indigenista Bruno Pereira, assassinado em junho deste ano, no filme "A invenção do outro", um dos destaques do Festival de Brasília (foto: Bruno Jorge/divulgação )
Ricardo Daehn/Correio Braziliense
 
Um “conjunto orgânico de filmes”, pelo que descreve a diretora artística Sara Rocha (neta de Glauber Rocha e Helena Ignez), vai embalar a 55ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. De volta ao formato presencial, o mais antigo e combativo evento do gênero no país começa nesta segunda-feira (14/11), na capital federal.

Seis longas e 12 curtas disputam, até domingo (20/11), o troféu Candango – títulos selecionados a partir de 213 longas e 937 curtas inscritos. Contemplar a diversidade com filmes das cinco regiões do país segue como meta, destacando o regionalismo da produção e a reafirmação de questões identitárias.

Grupo de mulheres de moto carrega faixa e trafega em rua de periferia no filme Mato seco em chamas
Distopia no Brasil dominado pela extrema direita, "Mato seco em chamas" destaca o protagonismo feminino nas periferias (foto: Terratreme/divulgação)

Abertura vai "pegar fogo"

Incendiária. Assim promete ser a abertura, nesta noite, com a exibição de “Mato seco em chamas”, filme de Adirley Queirós, cineasta de Ceilândia (DF) cuja carreira está ligada à história do festival, e da portuguesa Joana Pimenta.

Na fita, há escrutínio de personagens marginalizados no cenário balizado pelo comércio ilegal de gasolina, com ampla visibilidade para as mulheres.

A dupla Bruno Victor e Marcus Azevedo, de Brasília, comparece na competitiva com o longa “Rumo”. Neste filme de concepção híbrida, desponta a discussão sobre as cotas raciais instituídas há 20 anos no país.
 
Atriz Monica Maria usa blusa azul, está de lado com expressão preocupada no filme Canção ao longe
Monica Maria vive Jimena em 'Canção ao longe', filme da mineira Clarissa Campolina sobre arquiteta em busca de seu lugar no mundo (foto: Letícia Marotta/divulgação)
 

Recentemente à frente do longa “Enquanto estamos aqui”, codirigido com Luiz Pretti, a mineira Clarissa Campolina concorre com o filme “Canção ao longe”, que marca sua estreia na direção solo.

Na história rodada em Belo Horizonte, Jimena (Mônica Maria, estreando no cinema) é uma jovem arquiteta que vive com a mãe e a avó. Está tentando sair de casa e também romper com o pai, que, depois de uma década distante, volta a se relacionar com a filha por meio de cartas.

A partir dessa história de amadurecimento, o filme trata de questões de classe, família, tradição, raça e gênero.
 
Bruno Victor e Marcus Azevedo
"Rumo", documentário de Bruno Victor e Marcus Azevedo, aborda a polêmica sobre as cotas raciais no país (foto: Marcus Azevedo/divulgação)
 

Sempre lembrada pela capacidade mobilizadora, Marielle Franco se fará presente em “Mandado”, filme carioca de João Paulo Reys e Brenda Melo Moraes. A produção analisa o sistema penal por meio do exame da situação que atingiu moradores do Complexo da Maré, meses antes da Copa do Mundo de 2014.

Funai, Amazônia e Bruno

Também na linha de frente do Festival de Brasília se posiciona “A invenção do outro” (SP/AM), assinado por Bruno Jorge, que resgata o trabalho do indigenista Bruno Pereira, assassinado em junho. Centrado na atuação da Funai em 2019, o longa revela reencontros e o esplendor da Amazônia, ao abordar a interferência branca na etnia dos korubos.

Completando o time de longas selecionados para a competitiva principal, o pernambucano “Espumas ao vento”, de Taciano Valério, costura enredo sobre a expansão de templos neopentecostais ao mesmo tempo em que revela o ocaso trágico de uma trupe de artistas.

Outra seção competitiva, a Mostra Brasília, vai exibir quatro longas e oito curtas produzidos no Distrito Federal. Entre os selecionados está “O pastor e o guerrilheiro”, que marca o retorno do veterano cineasta José Eduardo Belmonte ao festival que o revelou. A produção debate os conflitos históricos e o triste legado da ditadura militar brasileira.

O diretor Felipe Gontijo apresenta “Capitão Astúcia”, aventura que une neto e avô para debater o envelhecimento. Realizador de Sobradinho, Pedro Lacerda documenta os livreiros candangos Ivan Presença e Chiquinho da UnB nos desafios impostos por novos modelos de negócio do mercado editorial em “Profissão livreiro”.

Wesley Godim fecha a seleção de longas com “Afeminadas”, documentário sobre o universo drag queen de Brasília.

Atriz Ruth de Souza sorri em cena do filme Diálogos com Ruth de Souza
Documentário "Diálogos com Ruth de Souza" destaca a presença do negro nos palcos brasileiros (foto: Preta Porter Filmes )

Homenagens

No próximo domingo (20/11), Dia da Consciência Negra, será exibido, fora da competição, “Diálogos com Ruth de Souza”, filme de Juliana Vicente que reconsidera toda a carga cultural presente na celebração de uma das primeiras-damas do cinema brasileiro, morta em 2019.

Na sequência, haverá sessão especial do documentário “Quando a coisa vira outra”, de Márcio de Andrade, em homenagem a Vladimir Carvalho, pioneiro do cinema brasiliense.

Em tributo ao diretor Jorge Bodanzky, o festival apresenta pequena mostra com produções do homenageado. Paulista, o cineasta iniciou sua carreira na Universidade de Brasília e realizou obras junto a Hector Babenco, Antunes Filho e outros. “Iracema – Uma transa Amazônica” (1974) é o filme mais conhecido dele.

Ao longo do festival, a homenagem vai levar ao Cine Brasília produções recentes de Bodanzky: “Distopia utopia” (2020) e o inédito “Amazônia, a nova Minamata?” (2022).

Além desses, o público poderá assistir à cópia restaurada de “Compasso de espera” (1969), longa de Antunes Filho, cuja fotografia é assinada por Bodanzky.
 
Diretores Adirley Queirós e Joana Pimenta sorriem, ao fundo vêem-se cartazes do festival de cinema de Berlim
Adirley Queirós e Joana Pimenta apostam na "etnografia da ficção" (foto: Reprodução)
 

ENTREVISTA

ADIRLEY QUEIRÓS E JOANA PIMENTA/CINEASTAS

“Fazemos política de cinema”


Há oito anos, a comoção tomou conta do Cine Brasília, palco do festival. A exibição do filme “Branco sai, preto fica” consagrou o cineasta Adirley Queirós, à frente ainda de “Era uma vez Brasília” (2017), igualmente selecionado para o evento.

Com a exibição de “Mato seco em chamas”, Adirley vê cristalizada a verve para o que chama de etnografia da ficção (mescla de documentário e ficção), na qual desponta uma representação de pessoas reais que passam a efetivar o lugar social que almejam. Em agosto, o jornal britânico “The Guardian” deu quatro estrelas para “Mato seco em chamas”.

Distopia ambientada numa Ceilândia e num Brasil dominado pela extrema direita, o filme acompanha três mulheres (Chitara, Léa e Andrea) que recolhem petróleo de oleodutos e o refinam até que  se torne gasolina. O trio se transforma nas Gasolineiras das Kebradas, que, montadas em motos, agitam as ruas da cidade no entorno da capital federal.

Qual é o mérito das mulheres na trama e nos bastidores de “Mato seco em chamas”?
Joana Pimenta – Elas têm vontade de ressignificar suas memórias, suas histórias, e as trazemos para um espaço de aventura. Pensamos nas três mulheres centrais como heroínas. Propomos a lenda das Gasolineiras para elas: vamos queimar o carro da polícia, vamos tornar a Ceilândia uma nação independente, vamos comercializar o petróleo, e a gente vai tirar pessoas da prisão. As atrizes que fazem personagens são essenciais. Chitara, por exemplo, está conosco desde a liberdade da prisão (ficou sete anos presa). São mulheres que, na vida real, são incrivelmente fortes, que eu respeito muito, admiro, são incrivelmente humanas, sinceras e corajosas. Viveram vidas de muita opressão, mas não ficaram presas à opressão a que foram sujeitas. Tiram a força para se reinventar. São atrizes não profissionais que tomam o ofício por projeto de vida.

Como tem sido a trajetória do filme no exterior?
Adirley Queirós – Ele já passou por mais de 60 festivais importantes. Tenho para mim que  talvez seja o brasileiro, em início de carreira, que mais participou de festivais este ano. A acolhida internacional é muito grande. Nas premiações, pela tradição histórica, por ser eixo de documentários, o prêmio do Cinéma du Réel, de Paris (foi o mais importante). Estivemos no Indie Lisboa e, primeira vez, um filme luso-brasileiro ganhou a mostra principal. As pessoas ficam impactadas pela forma do filme, e não só com a história. A estrutura, com poucos recursos e poucas pessoas, é grandiosa.

A mudança de governo, no âmbito federal, fortalece o apelo do filme?
JP – Recentemente, mostramos o filme, passada a eleição, no Forum.Doc, em Belo Horizonte, numa sessão maravilhosa, com debate longuíssimo e frutífero. A perspectiva, com a reeleição do Lula, é incrível. Mas estamos em um país dividido, e em dois extremos. Sou portuguesa, mas falo a gente. Mais importante que a eleição do Lula é o que vai ser feito por uma esquerda ou por pessoas progressistas para fazer frente à apropriação total que a direita fez das narrativas populares. Se não houver essa capacidade de reinvenção de progressistas brasileiros, daqui a quatro anos não haverá Lula. Fico muito feliz, e tenho orgulho enorme de trabalhar no Brasil. Agora, o relógio foi acionado: temos quatro anos cruciais pela frente.

O filme tem amplo teor político?
AQ – Política, em filme, tem sempre. Está no modelo de produção, na forma como a gente faz filmes. É extremamente político ter as pessoas com quem trabalhamos no espaço em que a gente trabalha, no local em que filmamos. O político está aí mais que no teor político-partidário. Há a política de território também. Ceilândia é transformada no imaginário das pessoas. Fazemos, principalmente, política de cinema, mesmo porque se fazemos com dinheiro do Estado, é importante retornar essa política em forma de economia e de distribuição de renda.
















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