O Artes Vertentes – Festival Internacional de Artes de Tiradentes, que tem início nesta quinta-feira (17/11) e segue até o próximo dia 27, está balizado, nesta sua 11ª edição, em duas efemérides: o bicentenário da Independência do Brasil e o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922. O que o evento propõe, no entanto, é menos uma celebração e mais uma problematização do que representam e de como reverberam nos dias atuais esses dois momentos da história do país.
Com a presença de mais de 40 artistas do Brasil e do exterior compondo uma programação que inclui artes visuais, artes cênicas, literatura, música e cinema, o 11º Festival Artes Vertentes tem o tema “(In)Dependências” como mote curatorial, que norteou a montagem da grade de atrações.
Os músicos Amaro Freitas e Virgínia Rodrigues; os escritores Edimilson de Almeida Pereira, Eliane Brum, Ricardo Aleixo e Mia Couto; o ator Gilberto Gawronski; a bailarina e coreógrafa Morena Nascimento e a Cia. de Dança do Palácio das Artes são alguns dos destaques da vasta programação oferecida aos moradores da cidade histórica e aos visitantes.
Curador e diretor artístico do festival, Luiz Gustavo Carvalho diz que as efemérides que norteiam a edição deste ano do evento dão margem para leituras críticas e reflexões em torno das diversas noções de independência.
Possibilidades de independências
“O bicentenário traz impulsos para uma série de provocações, no sentido de se pensar realmente as possibilidades de independências – assim mesmo, no plural – e de se colocar a questão de quais delas realmente aconteceram e para quem, e quais precisam ainda ser sonhadas para ser conquistadas”, diz.
O modernismo brasileiro também não está livre desse tipo de problematização, conforme aponta. Ele observa que, sem querer negar a importância da Semana de Arte Moderna de 1922, é preciso jogar luz sobre figuras que ficaram periféricas em relação ao movimento, como Lima Barreto, cujo centenário de morte também é celebrado em 2022. “Se a gente quer falar de independência, é preciso falar de Lima Barreto também”, aponta.
Duas exposições coletivas ilustram as efemérides. Uma delas, “Ainda que tardia”, realizada em parceria com a UFMG e o Câmpus Cultural UFMG em Tiradentes, estará em cartaz no Museu Casa Padre Toledo, antiga residência do inconfidente que dá nome à instituição e que está intrinsecamente ligada ao contexto em que as ideias de liberdade começaram a se forjar.
"O bicentenário traz impulsos para uma série de provocações, no sentido de se pensar realmente as possibilidades de independências - assim mesmo, no plural - e de se colocar a questão de quais delas realmente aconteceram e para quem, e quais precisam ainda ser sonhadas para ser conquistadas"
Luiz Gustavo Carvalho, curador e diretor artístico do festival
Históricos e contemporâneos
Os curadores – Verona Segantini, Guilherme Trielli e Fernanda Brito, além do próprio Luiz Gustavo Carvalho – propõem um diálogo entre obras que pertencem à coleção permanente do museu e à coleção Brasiliana, da UFMG, e obras de artistas contemporâneos brasileiros, como Arthur Bispo do Rosário, Edgar Xacriabá, Ricardo Aleixo e Mabe Bethônico.
O diretor artístico do festival destaca que a presença dos contemporâneos é uma forma de trazer contrapontos às obras históricas que estão presentes nos dois acervos. Ele diz que, na coleção Brasiliana, por exemplo, estão incluídos os livros de Frei Veloso, que durante o período colonial mapeou a fauna e a flora do Campo das Vertentes – algo confluente com o olhar dos artistas viajantes, os naturalistas estrangeiros que vieram ao Brasil na época.
“Frei Veloso fez o caminho contrário, porque ele era de Tiradentes e foi para a Europa publicar essa obra. A curadoria quer colocar esse olhar do outro, esse Brasil visto de fora, em confronto com os olhares que sempre estiveram aqui, antes mesmo de o Brasil ser Brasil. Por isso a presença, entre os contemporâneos, de artistas indígenas”, diz, citando os nomes de Edgar Xacriabá e Denilson Baniwa.
Retratos modernistas
A outra exposição, “Retratos modernistas do Brasil”, faz uma homenagem à Semana de Arte Moderna de 1922. Por meio de pinturas de alguns dos protagonistas do movimento, como Anita Malfatti e Di Cavalcanti, e obras de outros modernistas, como Vicente do Rego Monteiro, José Pancetti e Alberto da Veiga Guignard, a coletiva ressalta também a influência desse movimento nas artes plásticas brasileiras durante todo o século 20.
Para além da esfera das artes visuais, o Festival Artes Vertentes tem como uma de suas premissas estabelecer pontes entre as diferentes expressões artísticas que o compõem, segundo Carvalho. Uma performance literária do poeta Edmilson de Almeida Pereira precede a apresentação do pianista pernambucano Amaro Freitas na abertura do evento, por exemplo.
Já no dia 23, logo depois do concerto “E la nave va!”, com foco nas composições de Nino Rota, na Igreja São João Evangelista, será exibida a obra-prima de Fellini “Amarcord” – filme que pinta um quadro cômico-dramático da vida familiar, religião, educação e política dos anos 1930, quando o fascismo era a ordem dominante na Itália.
Diálogo entre áreas
O diretor artístico ressalta que esse diálogo entre áreas distintas está no cerne da montagem da programação. “Essa é uma das peculiaridades do evento, isso de propor conexões que permitem que esses fios condutores venham à tona por meio de diversas formas de expressão. Colocar essas programações próximas umas das outras ajuda o público a tecer essa rede”, salienta.
Instado a dizer o que considera os destaques da vasta programação do 11º Festival Artes Vertentes, ele aponta que a abertura, com a performance literária de Edmilson de Almeida Pereira e o concerto de piano-jazz de Amaro Freitas – dois artistas negros que se expressam por diferentes linguagens – será uma experiência muito simbólica.
Carvalho chama a atenção, também, para a performance de outro poeta, Ricardo Aleixo, que se apresenta no Dia da Consciência Negra, 20 de novembro. Ele sublinha, ainda, o espetáculo teatral “Luiza Mahin... Eu ainda estou aqui”, montado por um grupo de atores cariocas, que, a partir da personagem-título, nascida no início do século 19 e apontada como mãe do advogado abolicionista e jornalista Luiz da Gama, aborda o extermínio da juventude negra no país.
Com sua existência até hoje posta em dúvida, Luiza Mahin, que ficou conhecida como revolucionária na Revolta dos Malês, na Bahia, em 1835, representa o ideário de uma ancestral guerreira, símbolo de força e inspiração para as mulheres negras. A partir dessa figura, o espetáculo evoca histórias como as de Maria Felipa, Xica Manicongo, João Cândido e Antonieta de Barros, primeira mulher negra eleita deputada no Brasil, no início da década de 1920.
O curador aponta que o desejo de colaborar para que essas figuras, que tiveram relevância nos processos de independência e foram “apagadas” de uma história oficial brasileira, tenham sua existência reafirmada e cada vez mais conhecidas orientou a realização de um trabalho com as crianças e adolescentes de Tiradentes, no âmbito da Ação Cultural Artes Vertentes.
Projeto sociocultural
As histórias das personagens que o espetáculo “Luiza Mahin... Eu ainda estou aqui” aborda são contadas pelos participantes do projeto sociocultural desenvolvido pelo Festival desde 2013 por meio da xilogravura e da literatura de cordel. As xilogravuras e as histórias em literatura de cordel criadas pelas crianças e adolescentes participantes da Ação Cultural Artes Vertentes – projeto que se estende ao longo de todo ano – estarão espalhadas por toda a cidade durante os dias de realização do festival.
“Fazer da comunidade de Tiradentes protagonista da programação é essencial para que o Festival Artes Vertentes esteja cada vez mais enraizado. Essa edição é marcante porque o reconhecimento dessa iniciativa é tão grande que a gente acaba de receber, em comodato, um imóvel para a construção de uma escola livre de artes, com previsão de abertura para o segundo semestre do próximo ano.”
Permeando os dois pilares temáticos desta edição – a Independência e o Modernismo – a questão racial está presente de forma marcante na programação, conforme se pode observar. O fato de ser realizado no Mês da Consciência Negra é outro ponto que reforça essa presença, segundo Carvalho. Ele chama a atenção, também, para as expressões dos povos originários, que compõem, de maneira significativa, esta edição do Artes Vertentes.
“Não vejo como falar de independência sem dar voz a essas pessoas desde sempre silenciadas. Se a gente quer atingir uma verdadeira independência, elas precisam ser escutadas. Temos todo um ensinamento indígena que fala justamente da necessidade de interdependência com o planeta em que vivemos, e acredito que falar de independência passa por falar de interdependência. Não vejo outra forma de tratar esse tema sem ter essa presença de maneira expressiva”, ressalta.
ARTES VERTENTES
A partir desta quinta-feira (17/11) até o próximo dia 27, em vários espaços de Tiradentes. A programação completa pode ser conferida no site www.artesvertentes.com