Ainda que, previamente, estude particularidades das etnias antes de partir para o trabalho de campo com indígenas, o diretor Bruno Jorge se define, prioritariamente, como cineasta que pratica antropologia visual, mas não um especialista em etnografia.
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Integrado ao drama dos índios, uma personalidade marcante desponta na tela: o indigenista Bruno Pereira, símbolo da preservação do meio ambiente, assassinado ao lado do jornalista Dom Phillips, em junho deste ano.
Durante a última viagem de Bruno Pereira no Vale do Javari, o cineasta manteve contato com o xará. “Ele me mandou fotos, vídeos, áudios. Depois de fazer a reunião com os marubos, enviou, por fim, mensagem dizendo que estava tudo certo para nosso próximo filme e que faríamos, em setembro, uma viagem de mais de 40 dias juntos. Disse também que tão logo chegasse a Atalaia, me ligaria”, relembra. O brutal assassinato interrompeu esses planos.
“A invenção do outro”, além do registro de reencontros familiares, sedimenta um alicerce na perseverança de causas pessoais.
“Conheci Bruno Pereira no fim de 2018, quando ele era coordenador do Departamento de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai. Ele me convidou para acompanhá-lo na expedição. Não sei se é muito claro para as pessoas o que significa para um documentarista de inclinação etnográfica filmar a expedição de primeiro contato com indígenas na Amazônia. Não conseguiria imaginar cenário mais propulsor de sentido do que isso pra mim. Entendi logo, no início, o tamanho que também tinha tudo isso para o Bruno”, sintetiza o diretor. Na entrevista a seguir, ele fala sobre o novo filme, a relação com Bruno Pereira e o futuro do cinema.
Qual foi a dinâmica de filmagens de “A invenção do outro”?
Comecei a filmar desde que cheguei em Tabatinga (Amazonas), na sede da Funai. Foram dois, três dias de preparação, até partirmos de barco. Por questões de produção da expedição, passamos por Atalaia e pela base da Funai no Rio Ituí, e depois fomos para mais dentro da reserva, onde montamos o primeiro acampamento. Ali foi levantada estrutura maior, com heliponto e base da Saúde. Deixamos uma parte da equipe e adentramos mais no mato em duas voadeiras. Montamos o segundo acampamento, pequeno, de onde os seis korubos que estavam com a gente partiriam para a tentativa de encontro com os isolados, enquanto ficaríamos aguardando. Depois disso, colocamos as mochilas nas costas, dividimos a equipe em duas e partimos para longas caminhadas na floresta na tentativa de achá-los. Da chegada em Tabatinga até minha volta, foram 32 dias de expedição. Com mais de 60 horas de material filmado e imagens desta experiência profundamente complexa e ambivalente, ainda precisei traduzir as várias horas de filmagem do grupo de isolados. Depois de três anos e meio de trabalho, chegou a pós-produção e entendi que o melhor caminho era o de sempre, acumular praticamente todas as funções e finalizar o filme com meus parceiros.
Há momentos em que os índios encenam teatralizam algo? Eduardo Coutinho tratava muito da atitude frente à câmera. Como os índios se comportam?
Os korubos que ali estão buscando seus familiares são de recente contato, alguns deles contactados em 2014 e 2015. A familiaridade com o aparato de registro não é a mesma que a nossa. As ações tampouco são conduzidas por essa estrutura narcísica tutelada pela imagem reprodutível, como acontece com os não indígenas. Isso não quer dizer necessariamente que atitudes não possam mudar com a presença da câmera em diferentes situações, mas definitivamente não da mesma forma.
Qual é a emoção de ver em cena e de ter convivido com Bruno Pereira?
Aos poucos, fomos descobrindo que não tínhamos só os mesmos nome e idade, mas também éramos nascidos na mesma cidade e passamos a infância em bairros e escolas vizinhas. Bruno era obstinado, sagaz, teimoso, tinha boas histórias e gargalhadas, além da devoção ao indígena, daquelas que não falsificam a realidade. Dizia para ele que éramos meio franco-atiradores, eu estava investindo em nossa amizade e na continuidade do projeto de fazermos toda uma iconografia dos isolados durante os próximos anos. Quando viajou com o Dom, coincidentemente amigo meu de mais de 15 anos, uma das coisas que Bruno faria era articular com os marubos do Alto Curuçá para que fizéssemos o segundo filme juntos, desta vez sobre missão de proteção e segurança na aldeia. Bruno já tinha assistido a um corte do “A invenção do outro”, que estava em finalização.
A expedição, por anos, gerou riscos. Você se sentiu em perigo?
Estávamos todos em perigo o tempo todo, ninguém que ali estivesse não sabia disso. Na floresta, a morte é, talvez, algo mais íntimo, dela se fala e frequenta de diversas formas. Seis colaboradores da Funai já haviam sido mortos em tentativas de contato anteriores com os korubos, o último por uma bordunada por trás, enquanto filmava. Havia as outras ameaças da selva, como invasores, animais e acidentes. O medo é uma premissa de sobrevivência, não há outra forma de permanecer por lá muito tempo sem fazer uso dela. Em compensação, a chave mental é não deixar esse medo te paralisar. O jogo é este.
Deve ter dado desespero mexer na edição e cortar o filme. Do que você não abriu mão?
Não abri mão de incorporar esta morte como sujeito. Ela estava não somente em suspensão ou iminência, mas ali nos objetos daquela cultura, na rotina, nas narrativas, na nutrição, nos afetos. Todos os korubos têm trajetórias sangrentas incorporadas intimamente ao eu de cada um. Em geral, para comer, tínhamos de matar o que se mexesse. Muito macaco, jacaré e até preguiça. Em alguns momentos, todo mundo tinha de carregar o rango. Cheguei a passar horas andando com um macaco barrigudo morto amarrado na cabeça enquanto filmava. Certa vez, um ainda estava vivo e quase me mordeu nas costas. Normalmente, essa realidade não é exatamente digna de “empatia” para muita gente. Dar conta dela requer um deslocamento brutal desse eu. E nem todo mundo tá disposto a assistir a isso.
Há uma escola de cinema que mais tenha te influenciado?
Pergunta difícil, de escavação. Eduardo Coutinho foi uma referência importante, me lembro também de filmes como “Aboio”, de Marília Rocha, e “Terra deu, terra come”, de Rodrigo Siqueira. Mas o que poderia dizer essencialmente é que, desde o início, me identifiquei com cineastas que faziam filmes praticamente sozinhos, com todo o custo da prática da liberdade. No Brasil, citaria o Cao Guimarães e, internacionalmente, o belga Boris Lehman. Além dos primeiros filmes que me vêm à cabeça, como “Tarnation” (de Jonathan Caouette) e “Le filmeur” (de Alain Cavalier).
Como você percebe o lugar do cinema e da arte?
Há algumas décadas, a arte vem tentando justificar sua existência e necessidade através de aplicações pretensiosamente humanistas e se consolidando como mais uma ferramenta num mundo de ferramentas. Ela “nos torna melhores”, educa, a arte-terapia, a arte-utensílio. Já não há chance de vivenciar a experiência de um mundo da liberdade para além da necessidade. O importante se tornou o que ela faz, e não o que desfaz. Para Agustina Bessa-Luís, a arte deveria ser “algo mais. É o próprio alento humano para lá da morte de todas as quimeras, da fadiga de todas as perguntas sem solução.”
Como o cinema se integra com a política?
Existe, de fato, uma política na poesia do cinema que não se confunde com essa política ordinária, é muito mais rarefeita, profunda e sobretudo crítica da própria política, enquanto forma limitada de ver e elaborar a vida. À parte os hiatos, o cinema brasileiro se consolidou nas últimas décadas como arte estatal, e o que chamamos de cinema independente é intrinsecamente dependente de forças e burocracias dos governos. O cinema instrumento se torna ponto de partida, e os filmes são concebidos e formalizados a partir da estrutura moral desses Estados, acarretando em consequências políticas e estéticas em comum entre as obras. Um dos fatos evidentes dessa uniformidade é a enorme hegemonia do “cinema de identidade e oposição”, reproduzindo na arte os limites de compreensão da vida política. Essa identidade é o maior recurso ao “uno”. Os países ocidentais, por razões históricas, sempre deram privilégio à necessidade de buscar essa unidade: de um lado o “uno” e do outro o que não pertence a esse “uno”. Já a América Latina tem uma trajetória radicalmente distinta, da mais profunda miscigenação. E é justamente por essa mistura incessante e múltipla de uma variedade em movimento que nunca poderemos ser esse “um”.
O que nos define, então? Onde nós estamos?
Somos o “entre”. E quando enxergamos “unos” monolíticos, petrificados em suas identidades e, ainda, relacionados pela via única da oposição, acabamos por importar diagnóstico e formas de como devemos refletir os nossos próprios objetos da cultura. Isso não é pouca coisa. O ciclo se fecha quando justificamos que o cinema brasileiro “vai bem” ao citar a mesma aceitação internacional. Por fim, jamais podemos negligenciar no resultado dos filmes de hoje (e em nada no mundo atual) a força do sistema narcísico de recompensas proveniente do pertencimento ao grupo e amplificado pelas redes sociais. São poucas as obras que conseguem sobreviver a essas injeções de dopamina. Sobra como alento o fato de que, com uma provável e renovada ajuda do Estado para os próximos anos, há boas chances de aumentar a fatia do audiovisual brasileiro no mercado global da ética.
FESTIVAL DE BRASÍLIA DO CINEMA BRASILEIRO
Hoje, às 20h30, exibição do longa “A invenção do outro” (SP/AM), de Bruno Jorge, e dos curtas “Um tempo para mim” (RS), de Paola Mallmann, e “Lugar de Ladson” (SP), de Rogério Borges. O festival será encerrado neste domingo (20/11).