Jornal Estado de Minas

RACISMO EM PAUTA

Virgínia Rodrigues leva potência da música negra a festival em Tiradentes

A baiana Virgínia Rodrigues põe sua voz a serviço da música e da defesa do negro (foto: Pico Garcez/divulgação)

Em 1997, a baiana Virgínia Rodrigues estreou profissionalmente como cantora em “Sol negro”, seu primeiro disco. Logo na abertura, ouvia-se o canto de Verônica: “O vos omnes/ Qui transitis per viam,/ Attendite et videte/ Si est dolor/ Sicut dolor meus” (Ó vós todos que passais pelo caminho, vinde e vede se existe alguma dor como a minha dor). Com essa música, ela havia chamado a atenção de Caetano Veloso meses antes, na peça “Bye bye, Pelô”, do Bando de Teatro Olodum, em Salvador.





Naquele espetáculo, Virgínia Rodrigues cantava os versos de Verônica a capela. Emocionado com a performance, Caetano decidiu apadrinhá-la e assumiu a direção musical e artística de “Sol negro”.
 
Passados 25 anos, os versos em latim encontram eco no sofrimento que os negros enfrentam neste século 21, diz ela..

“Quando comecei a fazer cursos livres na Universidade Federal da Bahia, percebi que lá os negros eram tratados de maneira diferente”, afirma a cantora. “Não tinha professores negros. Os negros ali eram alunos e, mesmo assim, em número bem pequeno. Os que queriam entrar para a graduação eram preteridos nos testes”, lembra.

Independência, Modernismo e racismo

Virgínia é a atração musical desta terça-feira (22/11) do Artes Vertentes – Festival Internacional de Artes de Tiradentes. O evento, que começou no último dia 16 e será realizado até domingo (27/11) na cidade histórica mineira, conta com mesas-redondas, lançamento de livros, filmes e shows.





Esta edição adotou o tema “(In)Dependências”, destacando o bicentenário da Independência do Brasil e o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922. O festival busca questionar como os dois eventos históricos repercutem nos dias atuais, abordando, sobretudo, a questão racial.
 
 

A programação conta com 100 convidados, entre eles o escritor moçambicano Mia Couto, a jornalista gaúcha Eliane Brum, a deputada eleita por Minas Gerais Duda Salabert, o diretor-geral do Centro Cultural Galpão Cine Horto, Chico Pelúcio, o violinista Iberê Carvalho e Adriana Rouanet, diretora-executiva do Instituto Rouanet, filha do intelectual Sérgio Paulo Rouanet e da socióloga Barbara Freitag.

Na noite desta terça-feira (22/11), Virgínia subirá ao palco com a conterrânea Aline Falcão para interpretar obras de dois compositores negros de diferentes gerações: Paulinho da Viola e Tiganá Santana. “É um show para voz e piano”, adianta a cantora, sem poupar elogios à colega. “Aline é excelente pianista. Cheguei a ela pelo Tiganá, os dois trabalham juntos”, conta.





Dona de voz grave e encorpada, característica de mezzo-sopranos, Virgínia fez carreira no exterior. Já se apresentou no Hollywood Bowl, em Los Angeles, Barbican Conservatory, em Londres, e no tradicional Carnegie Hall, em Nova York.


 
A origem de Virgínia foi humilde e bem longe dos holofotes. Nascida e criada em Sete de Abril, subúrbio de Salvador, ganhava a vida como manicure. Sua formação musical se deu nas igrejas católicas (que costumava frequentar apenas para ouvir música durante celebrações), no coral que integrou na juventude e no rádio.

“O rádio era o único meio de comunicação lá em casa. Eu não tinha dinheiro para comprar vitrola, disco, televisão, nada disso”, lembra Virgínia.

Ela considera um privilégio viver na época em que as rádios programavam os mais diferentes estilos musicais. “Tocava Caetano, Milton (Nascimento), Chico (Buarque), (Gilberto) Gil, Clara Nunes – sambista que morreu em 1983, mas ainda sou muito apaixonada por ela – e Bidu Sayão (1902-1999). ‘Ave Maria’, de Gounod, e ‘Bachianas’, de Villa-Lobos, conheci pela rádio”, recorda a baiana.




Teatro e militância

Foi na época do Bando de Teatro Olodum, pouco antes de lançar seu primeiro álbum, que Virgínia percebeu que sua voz de mezzo-soprano poderia também ser utilizada no ativismo em benefício do povo negro. Então com 25 anos, ela entendeu que no Brasil existe uma “falsa abolição”.

“Não houve abolição. O povo negro, que tem consciência, sabe que não houve abolição. No Brasil, infelizmente, muitas reparações devem ser feitas ao povo negro e, principalmente, aos verdadeiros donos dessa terra, os indígenas”, ela afirma.
 
Buscando valorizar artistas e intelectuais negros, a programação do dia segue com a exibição dos filmes “Homem-peixe” (2017), de Clarisse Alvarenga, e “Pureza” (2019), de Renato Barbieri. O primeiro, um documentário, mostra que a relação entre as pessoas não precisa ser marcada por dominação, controle e violência. O segundo filme, protagonizado por Dira Paes, é um drama sobre trabalhadores rurais escravizados.




Ainda nesta terça-feira, haverá a contação de histórias “Vozes da mata”, com o gestor cultural Fernando Chagas e os contadores Aline Cântia e Sebastião Farinhada.
 

 

Vozes de Moçambique, Israel e da Guiné

Na quarta-feira (23/11), será a vez de Mia Couto participar da mesa-redonda "Independência em outras terras". Debaterão com ele a escritora israelense Tal Nitzán e o romancista guineense Tierno Monénembo.

Também haverá o bate-papo "Quilombo: território e resistência", com os professores José Luiz de Oliveira e Manuel Jauará, o curador do Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos de BH, Padre Mauro, e o capitão do Congado Nossa Senhora do Rosário Escrava Anastácia, Mestre Prego.

No mesmo dia, será realizado concerto com peças de Maurice Ravel (1875-1937), Francis Poulenc (1899-1963), Nino Rota (1911-1979) e Darius Milhaud (1892-1974). Por fim, o longa “Amarcord” (1973), de Federico Fellini (1920-1993), será exibido.



Na quinta-feira (24/11), haverá lançamento de livros; concerto com peças de George Enescu (1881-1955), Johannes Brahms (1833-1897), Robert Schumann (1810-1856) e Sergei Rachmaninoff (1873-1943); e exibição do documentário "Maïdan: Protestos na Ucrânia" (2014), de Sergei Loznitsa.

A programação segue na sexta-feira (25/11), com as mesas-redondas "Autonomia por meio da arte" e "Democracia, populismos e polarização", esta última mediada por Adriana Rouanet. Também haverá concertos de música clássica, exibição de congado e encenação da peça "Luiza Mahin...eu ainda continuo aqui", dirigida por Jorge Maya, com Cyda Moreno, Marcia Santos, Tais Alves e Jonathan Fontella.

Sustentabilidade cultural

No sábado (26/11), a agenda prevê apresentação do Coro VivaVoz, concerto de música clássica e performance de dança "Antes que a fanfarra tenha terminado o compasso". Foram programadas as mesas-redondas "Natureza, educação, ciência e estado", "Meninos, eu não vi! O indígena na literatura brasileira" e "Independência e sustentabilidade das atividades culturais", esta última com participação de Chico Pelúcio, diretor-geral do Centro Cultural Galpão Cine Horto.





 

Encerram o festival, no domingo (27/11), as mesas-redondas “Segundo sexo, feminismos plurais: resistências e lutas" e "Mesmo o silêncio gera mal entendidos", esta última com participação de Duda Salabert.



Também serão exibidas as animações "Ouvindo Beethoven" (2016), de Garri Bardin, e "Os olhos de Cabul" (2019), de Eléa Gobbé-Mévellec e Isabelle Breitman. Também haverá concerto de música clássica.

 

FESTIVAL ARTES VERTENTES

Até o próximo domingo (27/11), na cidade histórica de Tiradentes. Programação completa: www.artesvertentes.com. Ingressos à venda pelo site do evento para mesas-redondas, shows, performances e sessões de cinema, por R$ 40 (inteira) e R$ 20 (meia).