O legado que Erasmo Carlos deixa para a história da música popular brasileira vai muito além do rock - gênero ao qual ele desde sempre foi associado e tido como um dos principais representantes no país. A conquista do Grammy Latino 2022 na categoria melhor álbum de rock ou de música alternativa em língua portuguesa no último dia 17, há pouco menos de uma semana antes de sua súbita morte nesta terça-feira (22/11), aos 81 anos, ratificou esse lugar.
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Anos de formação
Nascido e criado na Tijuca, zona Norte do Rio de Janeiro, o garoto Erasmo Esteves cresceu em meio aos elementos que conformariam sua identidade musical. No Bar Divino, que frequentava juntamente com nomes como Jorge Bem e Tim Maia - com quem aprendeu a tocar violão -, ouvia bossa nova e rock'n'roll. Logo depois, em um show de Bill Haley no ginásio do Maracanãzinho, conheceu o capixaba aspirante a cantor Roberto Carlos.
Mais tarde, integrou o grupo Sputniks, cuja formação contava, também, com Tim e Roberto. A banda foi desfeita após uma lendária briga entre os dois. Tim viajou para os Estados Unidos ao mesmo tempo em que Erasmo e Roberto se aproximavam - tinham em comum a paixão por Elvis Presley e o fato de torcerem pelo Vasco da Gama.
Os primeiros registros fonográficos de Erasmo datam de 1960 e 1961, quando lançou um compacto duplo e, em seguida, o LP "Só twist", com os Snakes - a banda que havia montado depois do fim dos Sputniks. Sem alcançar o sucesso esperado, o grupo também chegou ao fim.
Início da trajetória
Erasmo foi, então, trabalhar como assistente do apresentador e produtor Carlos Imperial, por intermédio de quem viria a tornar-se crooner do grupo Renato & Seus Blue Caps, em 1962. Com Erasmo dividindo os vocais com o baixista Paulo César, Renato & Seus Blue Caps lançaram seu primeiro LP pela gravadora Copacabana.
Não muito depois, os Blue Caps acompanhariam o próprio Roberto Carlos na gravação de "Splish splash", numa versão para o português feita por Erasmo. O sucesso do disco garantiu não só a contratação de Renato & Seus Blue Caps pela gravadora CBS, como também o nascimento da parceria com Roberto.
Já tendo adotado o nome artístico Erasmo Carlos, ele se tornou autor de versões de músicas estrangeiras - norte-americanas e italianas, sobretudo - para diversos artistas. Isso, somado ao sucesso de suas parcerias com Roberto, o levou no final de 1964 até a gravadora RGE (mais direcionada à MPB e ao samba), para ser o nome do selo no já disputado mercado do iê-iê-iê.
Jovem guarda
O pop-rock brasileiro, que começara com o rock nos anos 50 e havia passado pelo twist do início dos anos 60, chegava ao iê-iê-iê em 1964 como um reflexo comportamental local à beatlemania. A Jovem Guarda agrupou as influências do pop britânico e ganhou popularidade definitiva a partir de setembro de 1965, quando a TV Record estreou o programa "Jovem guarda", apresentado por Roberto, Erasmo e Wanderléa.
A biografia de Erasmo Carlos registra 60 anos de trajetória na música, mais de 30 álbuns, que totalizam um número superior a 500 composições, com direito a sucessos que atravessam gerações, como "Além do horizonte", "É preciso saber viver", "Sentado à beira do caminho", "Minha fama de mau" e "O bom", entre outras.
Admiração dos pares
A grandeza do artista pode ser medida pela admiração que os pares nutriam por ele. Em 1982, por exemplo, foi homenageado com o programa "Erasmo convida", na TV Globo, que contou com as participações de Caetano Veloso, Gal Costa, Jorge Ben Jor, Maria Bethânia, Nara Leão e Roberto Carlos, entre outros nomes do primeiro escalão da MPB.
O respeito e admiração se estendiam também às gerações mais novas. Ele já dividiu palco com nomes como Marcelo Jeneci, Céu e Tulipa Ruiz. Em seu disco "Amor é isso", de 2017, contou com parceiros como Samuel Rosa, Marcelo Camelo, Marisa Monte, Adriana Calcanhoto e Emicida.
Plena atividade
A morte de Erasmo pegou os fãs de surpresa, já que ele estava em plena atividade. O disco que lhe rendeu o Grammy Latino 2022, "O futuro pertence à... Jovem guarda" foi lançado em fevereiro deste ano, o que desencadeou uma série de shows em todo o país, com datas marcadas também no exterior.
Somente em Belo Horizonte, ele se apresentou em duas ocasiões ao longo dos últimos seis meses. O show mais recente na capital foi no dia 16 de julho, ao ar livre, na praça da Assembleia, pelo Festival Meu Vizinho Pardini. Na ocasião, brindou o público com sucessos das décadas de 1950 a 1970 - boa parte deles registrados no álbum mais recente, em que revisita os primórdios do rock no Brasil.
Relação com BH
Menos de dois meses antes, no dia 29 de maio, ele subiu ao palco do Grande Teatro do Palácio das Artes para a apresentação que promovia o lançamento oficial na cidade de "O futuro pertence à... Jovem guarda". Na ocasião, em entrevista ao "Estado de Minas", ele falou de sua relação com aquele espaço e com a capital maneira, que sempre esteve presente de maneira marcante em seus roteiros.
"Minas, em geral, gosta muito de mim, então tenho certeza de que vai ser uma noite muito bonita. É sempre maravilhoso me apresentar no Palácio das Artes. Antes, eu me tremia todo por conta da responsabilidade, achava uma coisa muito grande para mim. Mas depois que me apresentei lá pela primeira e algumas outras vezes, me acostumei. Tenho o maior respeito pela casa", disse.
Dos últimos dez shows do Tremendão, cinco foram em Minas Gerais. Caeté foi a última cidade do estado onde se apresentou, em 23 de setembro passado. Quando fez show no Palácio das Artes pela última vez, ele também falou ao "Estado de Minas" sobre a situação política e social do país. Disse que a juventude no Brasil estava à mercê de escolhas erradas feitas no passado.
Novas gerações
"Nós não estamos cuidando das novas gerações. Não estamos garantindo saúde e educação à altura do que elas merecem para fazer do mundo um lugar melhor. O mundo anda completamente desajustado e a culpa é nossa, pelas más escolhas na hora de votar e por deixar o ódio atingir o patamar que está atingindo", apontou.
A última publicação de Erasmo Carlos no Instagram foi há quatro dias. Ele celebrou a conquista do Grammy Latino. "É tão importante entender o conceito, quanto ouvir a música... Existem várias formas de amor, e eu preciso de todas. Obrigado a todos que contribuíram para mais essa vitória, esse Grammy é o reconhecimento do nosso trabalho. O futuro pertence à jovem guarda", escreveu.
Erasmo concorreu na categoria com Baco Exu Do Blues ("Qvvjfa?"), Criolo ("Sobre viver"), Lagum ("Memórias) e Juçara Marçal ("Delta Estácio blues"). Esse não foi o primeiro Grammy Latino do cantor. Em 2014, levou o prêmio na categoria Melhor Álbum de Rock Brasileiro com o disco "Gigante gentil", e em 2018, foi um dos laureados no 19º Grammy Latino com o Prêmio à Excelência Musical.
Síndrome
Erasmo vinha tratando, há alguns meses, de uma síndrome edemigênica, que ocorre quando há um desequilíbrio bioquímico, dificultando a manutenção dos líquidos dentro dos vasos sanguíneos. Geralmente, essa enfermidade é causada por doenças cardíacas, renais ou dos próprios vasos.
Em outubro, ele foi internado no hospital Barra D'Or, na Barra da Tijuca, zona Oeste do Rio de Janeiro, com um quadro de saúde delicado, e precisou cancelar duas apresentações marcadas nas cidades de Miami e Orlando, nos EUA. No início deste mês, no dia 2, no entanto, recebeu alta e deixou o hospital.
"Ressuscitei no Dia de Finados e tive alta do hospital! Obrigado a Deus, a todos que cuidaram de mim, rezaram por mim e se torceram pela minha recuperação... Essa foto com a Fernanda traduz como estamos felizes", postou o cantor na ocasião, posando ao lado da esposa, a pedagoga Fernanda Passos.
Imprensa internacional
A morte de Erasmo Carlos tornou-se notícia também na imprensa internacional. Veículos da Argentina, Uruguai e Portugal destacaram a carreira do Tremendão e valorizaram a importância do cantor para a música brasileira. Nos textos, além de falarem da Jovem Guarda e da parceria com Roberto Carlos, aparecem elogios como "ícone" e "lenda do rock".