Jornal Estado de Minas

ARTES VISUAIS

Exposição coletiva 'Botar fé' inclui homenagem ao futebol de várzea

 

Ao longo dos últimos seis meses, Amanda Carneiro, curadora no Museu de Arte de São Paulo (MASP) e coeditora da revista "Afterall" – publicação norte-americana de arte contemporânea –, separava um dia a cada mês para sair de São Paulo e vir a Belo Horizonte para bate-volta. Ela foi uma das curadoras da oitava edição do Bolsa Pampulha, programa de residência artística da Prefeitura de Belo Horizonte.





Saindo do Rio de Janeiro, Raphael Fonseca, também convidado para ser curador desta edição do Bolsa Pampulha, vinha à capital mineira uma vez por mês. Entre indas e vindas, os dois percorreram, respectivamente, cerca de 7 mil e 6 mil quilômetros ao longo desses seis meses. Amanda Carneiro e Raphael Fonseca foram responsáveis pelo processo de pesquisa e imersão de 16 artistas e coletivos.

 

O trabalho desenvolvido pelos artistas residentes sob curadoria dos dois está na exposição "Botar fé", que será aberta nesta sexta-feira (25/11), no Museu de Artes e Ofícios, na região central da cidade.

 

Parte das obras será exposta no Viaduto das Artes, na região do Barreiro; e no jardim do Museu de Arte da Pampulha (MAP), a partir deste sábado (26/11). A visitação fica aberta até fevereiro.

 

Tendo o futebol de várzea como tema, Froiid exibe instalação com bandeiras e objetos, que inclui a gravação de cantos e tambores   (foto: Viaduto das Artes/Divulgação)

 

Os artistas residentes são Artes Sapas, ciber_org, Comum, Cozinha Comum, Dalila Coelho, Froiid, Hortência Abreu, Ing Lee, Ítalo Almeida, Josane Jorge, Luana Vitra, Lucas Emanuel, Marcelo Venzon, Marcus Deusdedit, Mateus Moreira e Pedro Neves. O nome da mostra foi escolhido em virtude das repetidas vezes que os artistas disseram aos curadores a expressão "boto fé".



"Agora que a montagem está finalizando, a gente pode perceber o quanto a interlocução entre esses artistas produziu diálogos muito além do que a gente podia imaginar", comenta Amanda, em entrevista concedida no início da tarde de quarta-feira (23/11).

 

Os bolsistas trabalharam por seis meses e, além de contarem com o apoio dos curadores, tiveram também suporte de tutores. Entre eles, Gabriel Martins, diretor de "Marte Um", filme brasileiro que tenta uma vaga no Oscar 2023. Os outros tutores foram Brígida Campbell, Marcel Diogo e Laura Belém.

 

Intervenção de Italo no Viaduto das Artes (foto: Viaduto das Artes/divulgação)
 

Diálogos MAP

Várias ações foram realizadas pelos residentes ao longo dos últimos seis meses. "Uma delas era chamada de diálogos MAP, onde convidamos agentes do sistema de artes para ser uma interlocução com os artistas residentes'', explica Amanda. Participaram desses diálogos desde estrangeiros, como o coletivo argentino Serigrafia Queer, até nomes locais e tradicionais da cena artística, como o fotógrafo mineiro Eustáquio Neves.





 

Em paralelo a essas ações, houve também atividades voltadas para a comunidade, para incentivar o fortalecimento do vínculo entre os artistas e a cidade. Diferentemente das edições passadas, o Bolsa Pampulha deste ano aumentou de 10 para 16 o número de artistas e coletivos contemplados e eliminou a limitação de idade (35 anos) para participar do programa, o que permitiu a Froiid, hoje com 36, ser selecionado.

"O Bolsa Pampulha coaduna muito com minha linguagem, com meus trabalhos que discutem o museu, os espaços específicos e os diálogos com a arquitetura. São sempre coisas que me interessaram e estão permeadas no meu trabalho", afirma.

 

Intervenção de Arte Sapas (foto: Viaduto das Artes/divulgação)

Na várzea

Para a mostra "Botar fé", Froiid fez pesquisa relacionada ao futebol de várzea. Há alguns anos, o esporte e os jogos em geral atraem o artista. Na Copa de 2014, por exemplo, juntamente com o Coletivo Mapa, ele fez um paralelo do mundial de futebol, no qual o campo era hexagonal e, ao invés do juiz, havia um terceiro time.





 

"A partir daí eu começo a misturar meu trabalho com três elementos, que são a tradição construtivista da arte contemporânea brasileira, a maneira como os jogos se constituíram na sociedade e, por fim, a favela, a periferia", explica.

 

Pesquisando mais sobre o circuito de futebol amador, Froiid observou que existiam vários elementos estéticos que poderiam fazer parte das instalações que ele tinha em mente para o programa de residência. "Em BH existem mais de mil times amadores, sendo que alguns têm mais de 100 anos de existência", admira-se o artista.

 

Uma das obras desenvolvidas é um agrupamento com 22 bandeiras concebido a partir do formato dos brasões e das cores dos times que se repetiam. Essas bandeiras estarão expostas no MAO junto da gravação de cantos e tambores que Froiid fez com torcidas organizadas de alguns dos clubes que integram o circuito do futebol de várzea da cidade.





 

Outra instalação do artista está no Viaduto das Artes. São 22 figurinhas em tamanho A3 com fotos que ele fez, não de jogadores, e sim de elementos típicos do futebol de várzea, como o campinho de terra, as marcações de campo e os inusuais patrocinadores das camisas. Todas essas figurinhas são assinadas por "sujeitos varzeanos".

 

"Esses sujeitos são as pessoas que fazem a várzea. É o cara que tem um boteco do lado, o pessoal que vende cerveja, a galera que vai ver o jogo, os dirigentes do time. São as pessoas que frequentam esse circuito", diz Froiid.

 

Para a terceira instalação, que estará no jardim do MAP, o artista se inspirou na religiosidade, que acabou virando um dos elementos do futebol. Para ele, o estádio chega a ser considerado por muitos como um templo, onde o próprio jogo é visto como um culto. Serão expostas, portanto, três fotos de jogadores - de várzea, conforme ele destaca - rezando ao comemorar um gol ou a vitória do time.





 

Intervenção "Sopa de letras", proposta por Comum, leva o grafite para o Museu de Artes e Ofícios (foto: Comum/Acervo Pessoal)
 

Grafite

Outro artista que também contará com instalações integrando a mostra "Botar fé" é o grafiteiro e rapper Comum. Aos 35 anos, ele é outro que corria o risco de ficar de fora do programa por limitação de idade.

 

Comum preparou três instalações de grafite espalhados pela cidade (o primeiro está no Viaduto Moçambique, na Avenida Antônio Carlos; o segundo está no Viaduto das Artes, no Barreiro; e o terceiro, que ele produzia na tarde de quarta-feira, está em local ainda não divulgado). Comum também terá uma intervenção exposta no MAO.

 

No grafite, o estilo do desenho que Comum usa em suas intervenções é chamado de "Sopa de letras", justamente o nome que ele deu ao conjunto das obras que integram "Botar fé". As 'Sopas de letras' são grandes intervenções coletivas feitas na rua, onde várias pessoas escrevem o próprio nome, criando um mosaico colorido com diversos nomes.





 

Para fazer jus ao nome do estilo de grafite escolhido para suas obras, Comum convidou 16 grafiteiros para criar sua própria "Sopa de letras" dentro do MAO. No entanto, ao invés de eles escreverem o próprio nome, Comum pediu para que escrevessem trechos de frases, em uma proposta de se apropriar do dispositivo do grafite para a construção textual.

 

"O texto é um grande componente dessa obra", afirma. "Eu parto da frase 'Um graffiti na parede já defende algum direito', do Helião, que é do grupo de rap paulista RZO, e vou modificando para: 'A palavra na parede já defende algum direito' e 'Um nome na parede já defende algum direito'. É uma intertextualidade entre o rap, o grafite e o texto para buscar as aproximações entre elas", explica.

 

 

Ao longo dos últimos anos, curadores de importantes instituições nacionais e internacionais ensaiam o movimento de trazer a arte de rua para dentro dos museus, precisamente o que Comum está fazendo com sua intervenção no MAO. "Busco sempre as convergências desses universos. Mas confesso que é algo muito conflituoso, muitas vezes eles se estranham. Mas ainda acho que é possível convergir", afirma.





 

"É importante entender que, na maioria das vezes, o lugar da arte de rua é na rua mesmo, Contudo, ao mesmo tempo, é muito importante levá-la para dentro do museu, porque, querendo ou não, o museu ainda é a instância legitimadora da arte. Além disso, percebo que, para muitos artistas de rua, é representativo estar dentro do museu."

 

Essa convergência também é o que a curadora Amanda Carneiro espera para um futuro não tão distante nas artes visuais. "Ainda há uma dificuldade de acesso (às diferentes formas de arte). Mas, cada vez mais, as instituições e os agentes do sistema entendem a necessidade de ampliar o acesso para que os espaços de artes sejam mais acolhedores. E para que a rua ocupe as instituições de arte e as instituições também ocupem as ruas. Esta exposição, portanto, transita bem entre esses diversos espaços", diz.

"BOTAR FÉ"

Exposição dos artistas residentes da 8ª edição do Bolsa Pampulha. No Museu de Artes e Ofícios (Praça Rui Barbosa, 600, Centro), desta sexta (25/11) a 4 de fevereiro de 2023. No Viaduto das Artes (Avenida Olinto Meireles, 45, Barreiro), deste sábado (26/11) a 5 de fevereiro de 2023. No jardim do Museu de Arte da Pampulha (Avenida Otacílio Negrão de Lima, 16.585, Pampulha), deste sábado (26/11) a 5 de fevereiro de 2023.





 

Integrantes do programa Bolsa Pampulha (foto: Bolsa Pampulha)
 

OS RESIDENTES

Confira os artistas e coletivos participantes do Bolsa Pampulha

 

. Artes Sapas (Letícia Bezamat e Nádia Fonseca)

. ciber_org
. Comum
. Cozinha Comum (Jon Olier, Julia Bernardes, Laís Velloso e Silvia Herval)
. Dalila Coelho
. Froiid
. Hortência Abreu
. Ing Lee
. Ítalo Almeida
. Joseane Jorge
. Luana Vitra
. Lucas Emanuel
. Marcelo Venzon
. Marcus Deusdedit
. Mateus Moreira
. Pedro Neves