A prosa de Luiz Ruffato fascina não só pela miríade de personagens. De maneira geral, são figuras da classe trabalhadora, invisíveis em boa parte da literatura mundial, cujas vozes se multiplicam, romance após romance. O aspecto formal, algo caro ao projeto literário do autor mineiro, ganha outras nuances a cada nova narrativa.
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Biografia de Paulo Leminski está de volta às livrarias, após nove anosLuiza Romão leva Jabuti de livro do ano em prêmio dominado por mulheresLivraria Quixote abriga dobradinha de lançamento de revistasAnnie Ernaux emociona plateia ao falar de aborto no último dia da FlipMulheres brilham no JabutiA narrativa abrange 100 anos de quatro gerações de uma família de imigrantes italianos que aportou na Zona da Mata mineira para trabalhar com a lavoura de café – que é também a trajetória dos próprios avós de Ruffato, que deixaram a região do Vêneto no final do século 19 para chegar ao Brasil.
Quatro partes
São 100 capítulos curtos que se dividem em quatro partes. A quarta parte é a que dá início à narrativa, em 6 de agosto de 2016, com a trajetória de Alex, imigrante brasileiro trabalhando em subempregos em Somerville, subúrbio de Boston, Massachusetts. A parte seguinte, a terceira, é iniciada nos anos 1990 e traz como protagonista Dagoberto. Pai de Alex, na vida adulta, casou e criou os filhos em São Paulo.
A segunda parte volta ainda mais no tempo, até a década de 1960, e a partir de Cataguases, também cidade natal de Ruffato, acompanha a vida de Aléssio, pai de Dagoberto. A última parte, na verdade, a primeira, é centrada em Abramo, que veio para o Brasil ainda bem pequeno com os pais e se estabeleceu em Rodeiro, também na Zona da Mata.
Os tempos mudam, os lugares também, mas as vidas destes personagens e daqueles que os rodeiam permanecem à deriva.
“Quando comecei a estrutura de ‘O antigo futuro’ pensei no porquê de as coisas aqui não darem certo: o que acontece que a gente anda, anda e não sai do lugar? A eleição do Lula: vamos começar 2023 como começamos 2002, 20 anos atrás. É como se estivéssemos numa roda: tento discutir a questão do presente fazendo uma reflexão do passado a partir da constatação de que vivemos um passado que não passa”, afirma Ruffato, na entrevista a seguir ao Estado de Minas.
Como em seus romances anteriores, a forma chama a atenção em “O antigo futuro”. Como se dá seu processo?
Em todos os livros eu só sento para escrever depois que tenho a estrutura bem clara na cabeça. E não só a estrutura, preciso do título pronto, da epígrafe. Ele nasce da forma que está. Evidentemente que a escrita não, mas a anterioridade da estrutura precisa existir até para que eu dê conta de começar o livro. Antes de iniciar, preciso conhecer os personagens, saber como vão agir. Quando sentei para escrever, já sabia que ele ia começar pelo fim, que a história seria contada do fim para o começo. Não tinha, no entanto, muito claro qual seria todo o período, de 100 anos, assim como os 100 capítulos. Isto foi nascendo ao longo do processo.
E a reescrita é constante, não?
Não me considero um escritor, me considero um reescritor. Até entregar o livro para a editora vai um longo período de reescrita. E não é que eu escreva o livro todo e depois vá reescrevendo; meu processo de reescrita se dá no próprio momento que estou escrevendo. Escrevo palavra por palavra, linha por linha. Enquanto não termino um parágrafo não passo para outro. Mas para terminá-lo vou reescrevendo até chegar o momento em que está bom.
Você dedica “O antigo futuro” a quatro gerações de sua família: seus avós, pais, irmãos e filhos. É uma narrativa pessoal?
Sim e não. Sim porque pelo menos no meu caso, todo o processo de escrita é absolutamente pessoal. Sendo assim, ele, evidentemente, vai ter coisas relacionadas comigo direta ou indiretamente. Mas ao mesmo tempo não, porque não é a história da minha família, não é uma autobiografia. Portanto, me sinto muito à vontade para recolher material. No romance anterior, ‘O verão tardio’ (2019), eu já trabalhava com a ideia em algum lugar em Rodeiro (município da Zona da Mata mineira), onde tem famílias italianas. Sempre há essa questão: há uma proximidade, mas que também é uma distância. Tem várias passagens do livro que eu ouvi falar, ou falaram comigo, ou aconteceram comigo. Mas são de tal forma deturpadas que tudo é absolutamente distante de mim. Posso dizer que não aconteceu comigo, pois foi tão deformada. Mas aconteceu comigo. (risos)
Por que seus protagonistas são sempre homens?
Você pode perceber que os protagonistas, em geral, são homens fracos. Quem são as personagens fortes em todos os meus romances são as mulheres. Eu nem sabia disso, para falar a verdade. Foi uma menina que, há alguns anos, fez tese de doutorado e discutiu isso. Fui ver, era verdade. É mais ou menos o que acontece na vida real. As grandes mudanças que são feitas, principalmente no Brasil, aparentam ter sido feitas pelos homens, mas as efetivas são provocadas pelas mulheres. Isto também tem a ver com a minha formação de família italiana. Os homens machistas pra caramba, mas quem realmente toma as decisões são as mulheres.
O romance traz uma ideia circular, que é referendada quando um dos personagens, na parte final da narrativa, diz “amanhã é futuro, para nós não há futuro”.
Sou um autor monotemático. Todos os meus livros tratam da questão política do Brasil. Para mim não interessa história pessoal, história de amor, ou de um personagem. Meus livros discutem o peso da história do Brasil, o peso que é o nosso passado que não passa. Neste livro, a ideia foi construir uma história que avança para trás, que é exatamente a história do Brasil. (O romance) Começa com a imigração e termina com a imigração. Há muito pouca literatura sobre imigração no Brasil. Acho estranhíssimo, porque é um país basicamente de imigrantes, e a literatura de imigração é muito pequena. Se você quiser conhecer a imigração através dos romances brasileiros, vai ter muito pouca coisa. E a maior parte é uma grande bobagem. Para mim, esse livro tem a importância de discutir a imigração nos dois polos: no país que recebeu a imigração e no país que permitiu que as pessoas saíssem. Acho que é a nossa grande tragédia hoje. Um país imenso, um dos mais ricos do mundo em termos de recursos e que, no entanto, não consegue sequer manter a população nele.
A narrativa começa em 6 de agosto de 2016 e termina em 6 de agosto de 1916. Qual o significado destas datas?
Para mim o que importa é o ano, 2016. Só para lembrar, foi o ano em que aconteceu o golpe contra a Dilma, me lembro perfeitamente de no dia da votação do impeachment ver um desfile de horrores. Muita gente falava: ‘Esse Congresso não me representa’. Pelo contrário: aquilo ali é exatamente a cara do Brasil. Acho que 2013 e 2016 são dois anos muito importantes, anos em que o Brasil no qual estamos hoje se define: 2013 foi o momento que a extrema direita percebeu que poderia sair para a rua e em 2016 se dá o golpe que iria redundar na eleição do Bolsonaro. E eu insisto sempre nisso: o Bolsonaro não deu um golpe, ele foi eleito por uma decisão da população de colocar essa coisa inominável no poder. E mais: perdeu agora com uma diferença muito pequena de votos. Portanto, aquelas pessoas que colocaram Bolsonaro no poder em 2018 continuam aí. E continuam fortes.
E o que espera para 2023? Há um futuro em vista?
Tem duas coisas que são indiscutíveis. Primeiro, que estamos virando uma página: estávamos na barbárie absoluta, vamos voltar a rumar para a civilização. É um fato fundamental para o Brasil. A eleição de 2018 era: ou você vota no Haddad, que é o Lula, ou você vota no Bolsonaro. Esta eleição não foi assim. Foi: ou você vota contra o Bolsonaro ou contra o Lula. É completamente diferente. E se nós não entendermos isto, o que significa trabalharmos para mudanças estruturais no país, não iremos muito longe, infelizmente.
“O ANTIGO FUTURO”
.De Luiz Ruffato
.Companhia das Letras (224 págs.)
.R$ 69,90 (livro) e R$ 39,90 (e-book)
.Lançamento no próximo dia 5 de dezembro