“Uma maranhense”. Era assim que Maria Firmina dos Reis (1822-1917) assinava seus livros. Com o romance “Úrsula”, publicado em 1859, ela foi considerada a primeira escritora negra e romancista do Brasil. No entanto, caiu no ostracismo, sendo redescoberta mais de um século depois, em 1970, pelo historiador Horácio de Almeida (1896-1983), enquanto vasculhava as prateleiras de um sebo no Rio de Janeiro.
Intrigado pelo romance de 1859 assinado por “Uma maranhense”, Horácio foi procurar saber quem seria a tal mulher. Descobriu que se tratava de uma filha de escravizada, nascida em São Luís, mas criada na atual cidade de Guimarães, também no Maranhão.
Não se sabe se foi pela condição da mãe ou por puro humanismo, mas fato é que Maria Firmina dos Reis sempre levantou sua voz contra a escravidão. Sua crítica à exploração de homens e mulheres pode ser encontrada, por exemplo, no conto “A escrava”, no “Hino da abolição dos escravos”, de maio de 1888; e no próprio “Úrsula”, que apresenta alto teor abolicionista.
Nos últimos dias, Maria Firmina dos Reis esteve nos principais noticiários do país por ter sido a homenageada da edição 2022 da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) - antes disso, no entanto, foi relembrada na 10ª edição do Festival Literário de Araxá (FliAraxá), em maio passado; e ganhou uma biografia escrita pelo juiz e escritor maranhense Agenor Gomes.
As honras póstumas recebidas são uma tentativa de resgatar a memória de escritores negros que acabaram sendo apagados da história brasileira e deixaram de receber o devido reconhecimento pelo trabalho no campo literário.
Estudos de linguagens
Nessa toada, o professor do programa de pós-graduação em Estudos de Linguagens, da graduação em Letras e do ensino médio do CEFET-MG Luiz Henrique Oliveira, e a doutoranda em Estudos de Linguagens pelo CEFET-MG e mestre em Estudos de Linguagens Fabiane Rodrigues escreveram o livro “Trajetórias editoriais da literatura de autoria negra brasileira”, que busca registrar o trabalho de negros e negras que publicaram textos de ficção e não ficção no Brasil entre 1859 a 2020.
O lançamento será realizado pela editora Malê, nesta quarta-feira (30/11), na Academia Mineira de Letras (AML), após palestra homônima à publicação realizada pelos autores.
“Nós fizemos um levantamento de quantos autores publicaram, em que cidade e região eles publicaram, e quando foi que eles publicaram. Pegamos esses dados com o Grupo Interdisciplinar de Estudos do Campo Editorial (Giece). E com eles em mãos, a gente conseguiu fazer um mapeamento”, explica o professor.
Os resultados obtidos são surpreendentes. Quando se trata de livros de ficção lançados por autores negros, a divisão foi feita por períodos históricos. Ou seja, o primeiro recorte foi de 1859 - ano de publicação dos romances “Úrsula”, de Maria Firmina dos Reis, e “Trovas burlescas”, de Luiz Gama (1830-1882) - até 1888, ano anterior à Proclamação da República.
O segundo corte foi durante a Primeira República Brasileira (de 1889 a 1930). O terceiro pegou o final da Segunda República Brasileira e todo o Estado Novo (1930 a 1945).
O quarto recorte foi durante a Quarta República Brasileira (1946 a 1963). Já o quinto foi durante todo o regime militar (1964 a 1985). A última análise foi realizada a partir da redemocratização (de 1986 a 2020).
“No primeiro recorte, nós encontramos nove publicações de autores negros. No segundo, esse número subiu para 11. Já no terceiro, época do Estado Novo, da primeira ditadura no Brasil, achamos apenas uma publicação. No quarto, foram quatro publicações. Na ditadura militar, o número caiu para duas publicações. E, depois da redemocratização, mapeamos 57 publicações de autores negros”, conta Luiz Henrique.
Se os números são tão destoantes entre as publicações de ficção de autores negros, eles são mais “organizados” quando se trata de publicações de não ficção.
Para esse gênero, os autores decidiram analisar os dados por décadas e encontraram uma crescente constante nos números, até a década que compreende os anos de 2000 a 2009. Contudo, a partir de 2010, o número de publicações caiu vertiginosamente - entre 2000 e 2009, foram 53 publicações de autores negros; já entre os anos de 2010 a 2020, foram 26 publicações.
Racismo
“O Brasil é um país racista em sua estrutura”, afirma Luiz Henrique Oliveira. “O Cuti, que é um dos autores que a gente estuda neste livro, diz que, por trás da linha editorial das editoras, sempre houve um racismo editorial. Nós temos, infelizmente, uma linha de invisibilização de autores negros.”
O racismo, que ainda hoje está presente na sociedade brasileira, em 1859, antes da abolição da escravatura, era muito maior e mais evidente entre os brasileiros, o que certamente dificultava a publicação de autores negros.
No entanto, para conseguir imprimir as próprias obras, de acordo com Fabiane Rodrigues, foi necessário que, por iniciativa própria, os negros construíssem ambientes que viabilizassem sua literatura.
“Essas publicações ocorreram por iniciativa dos próprios indivíduos negros, que se uniram. Porque, quando se pensa nos escritores negros que publicaram suas obras, a gente precisa pensar que existiam leitores para essas obras”, explica Fabiane.
Ela ainda acrescenta que a literatura negra surgiu muito próxima da imprensa negra. Afinal, “junto com essas publicações literárias, a gente vê nascendo também os periódicos negros, o que faz a gente concluir que os escritores tiveram que, primeiramente, construir esses ambientes que permitissem que essa literatura fosse viabilizada”.
Esquecimento
Entre os autores citados em “Trajetórias editoriais da literatura de autoria negra brasileira” estão desde nomes mais conhecidos, como Machado de Assis (1839-1908), Lima Barreto (1881-1922) e Conceição Evaristo, até autores que já haviam caído em quase completo esquecimento.
“É o caso de Raul Astolfo Marques (1876-1918)”, lembra Luiz. “Em nossa pesquisa, nós ficamos sabendo da existência dele, mas não tínhamos a confirmação, uma espécie de prova concreta, porque não encontrávamos nenhum texto ou livro que ele publicou. Foi quando, em um sebo, achamos ‘A nova aurora’, um livro dele datado de 1913. Aí, sim, conseguimos ‘provar’ a existência dele”.
Na edição encontrada no sebo, Luiz e Fabiane descobriram outros títulos de Astolfo Marques que haviam sido publicados pela editora. “Até uma peça de teatro ele tinha”, comenta o professor.
“TRAJETÓRIAS EDITORIAIS DA LITERATURA DE AUTORIA NEGRA BRASILEIRA”
.Luiz Henrique Oliveira e Fabiane Rodrigues
.Editora Malê (260 págs.)
.48,90
BATE-PAPO E LANÇAMENTO DO LIVRO
.Palestra com Luiz Henrique Oliveira e Fabiane Rodrigues. Nesta quarta-feira (30/11), às 19h, na Academia Mineira de Letras (Rua da Bahia, 1.466, Centro). Entrada franca. Mais informações: (31) 3222-5764.