Ethan Clade, um garoto negro de 16 anos que está apaixonado por outro menino, é um dos protagonistas de "Mundo estranho", nova animação da Disney, em cartaz nos cinemas.
É a primeira vez que a empresa do Mickey põe um um personagem LGBTQIA+ em papel de destaque num longa-metragem, decisão que ocorre oito meses depois de a produtora ter sido acusada por funcionários de censurar cenas gays em seus filmes.
A história de "Mundo estranho" se passa nas terras de Avalônia, um local que depende de uma planta para ter energia elétrica. Quando o vegetal é ameaçado de contaminação, a família de Ethan sai em missão para tentar salvar as plantações daquele lugar. No caminho, eles encontram um parente desaparecido e precisam enfrentar várias criaturas perigosas.
A Disney vende orelhas de Mickey pintadas com as cores da bandeira LGBTQIA em seus parques de diversão, mas raramente inclui personagens da comunidade nos filmes. Em março passado, funcionários da Pixar, que pertence à Disney, divulgaram uma carta em que acusavam a produtora de cortar cenas de afeto entre personagens do mesmo sexo.
Três meses depois, em junho, a Pixar lançou "Lightyear", filme que exibe um beijo entre um casal lésbico. Nos filmes produzidos pela Disney mesmo, entretanto, praticamente não há personagens LGBTQIA .
Conflitos
"Mundo estranho" começa com uma cena estilosa que apresenta o pai e o avô de Ethan, dois homens com objetivos de vida opostos que se desentenderam em certo ponto da vida. É a partir dessa briga que outros conflitos geracionais se desenrolam ao longo da trama.
A história depois avança 25 anos e introduz Ethan. Depois de ficar constrangido por causa do beija-beija meloso dos pais, o garoto gagueja em frente ao rapaz por quem está caidinho. Sua sexualidade é tratada com naturalidade pelo texto, pelo próprio garoto e pelos personagens ao seu redor - seu pai, Searcher, até brinca com o menino sobre a situação. É como se Avalônia fosse um lugar utópico, livre de preconceitos.
O flerte é jogado para escanteio quando o garoto e sua família embarcam numa nave que explora pedaços desconhecidos daquele mundo estranho. No caminho, Ethan conhece seu avô, faz amizade com um bicho gelatinoso azul, ganha ares de herói e descobre que sua vocação é ser um explorador. Isso deve frustrar as expectativas de seu pai, que sonha em ver o filho como fazendeiro.
Conflitos familiares e autodescoberta são temas batidos dentro da Disney, mas aqui os assuntos ganham brilho por causa da representatividade carregada pelo garoto. Se na história o pai se decepciona com o filho, nada tem a ver com sua sexualidade. A briga é por causa de sonhos, de profissão e de vocação - clichês que atravessam a vida de qualquer um, sendo gay ou não.
Será curioso notar a repercussão desse filme entre os conservadores. "Lightyear", por exemplo, não recebeu autorização para estrear em ao menos uma dúzia de países, como os Emirados Árabes Unidos, o Egito e a Indonésia.
"Mundo estranho" até tenta chamar a atenção do público para seus cenários exuberantes e ultracoloridos, além de querer empolgar com as cenas de batalhas entre humanos e criaturas inusitadas, mas o espetáculo do filme está mesmo na evolução dos personagens.
Vocação
A mãe de Ethan, por exemplo, também descobre sua verdadeira vocação durante a viagem, quando assume o controle da nave. Searcher, o pai, é levado a confrontar seu passado ao se ver de frente com o futuro desejado pelo filho. O avô, por sua vez, precisa quebrar a sisudez que carregou a vida inteira para compreender a individualidade daqueles que ama. É mais uma das animações da Disney que quer falar com adultos e crianças.
O filme se beneficiaria se dedicasse mais tempo de tela aos personagens, especialmente para Ethan - seu conflito com o pai escala de maneira desproporcional à rapidez com que é resolvido. O ato final também soa apressado.
"Mundo estranho" está longe da originalidade de "Zootopia", não tem uma história envolvente como a de "Moana" nem as músicas grudentas de "Encanto". Mas vale o ingresso. É um desenho infantil nos moldes clássicos da Disney, mas com gays que vivem felizes para sempre. (GL - Folhapress)
“MUNDO ESTRANHO”
(EUA, 2022, 101 min.) Direção: Don Hall e Qui Nguyen. Em cartaz em salas das redes Cineart, Cinemark, Cinesercla e Cinépolis.
Roteiro de “Mundo estranho” atraiu dubladores famosos
Sem planejar, Jaboukie Young-White, de 28 anos, entrou para a história da animação. É que no filme "Mundo estranho", em cartaz nos cinemas, ele interpreta o adolescente Ethan Clade, primeiro protagonista abertamente LGBTQIA em um longa da Disney. O ator e comediante, no entanto, diz que não levou essa característica em conta na hora de emprestar sua voz para o personagem.
"Achei que seria incrível se eu pudesse olhar para ele como olharia para um garoto qualquer", contou em bate-papo com jornalistas para divulgar o filme. "Mas saber que eu poderia ser parte do que isso significa para outras pessoas é lindo. É sobre isso."
O americano de origem jamaicana, que é abertamente gay, conta que ficou muito animado com a participação no longa. "Não é uma história sobre ele sair do armário ou sobre ele aceitar a própria sexualidade, é sobre ele estar se descobrindo plenamente em um ambiente que está pronto para dar apoio a ele", comenta. "Acho que isso é interessante em qualquer meio, mas em uma animação isso é gigantesco."
Na animação, fica claro que Ethan tem um "crush" pelo colega Diazo (Jonathan Melo, na dublagem original). A orientação sexual do jovem não chega a ser uma questão para a família ou para os amigos. É tratada com naturalidade por todos a seu redor.
Experiência
O jovem é filho do fazendeiro Searcher Clade, que é interpretado por Jake Gyllenhaal, de 41. "Eu tenho alguma experiência plantando cânhamo e soja", brinca o ator. "Não, na verdade, eu tenho amigos próximos que são fazendeiros de verdade."
A trama foca a divergência entre Searcher e seu pai, Jaeger Clade (Dennis Quaid), que queria que o filho seguisse seus passos como aventureiro. "Eu amo aventuras também", continua Gyllenhaal. "Podemos ir para outra sala para eu contar os detalhes . Então, sou experiente em aventuras e em plantações."
O astro de Hollywood conta que se envolveu com o roteiro por sentir que se tratava de uma história muito pessoal. "Consegui trazer a minha própria experiência de algum modo", avalia. "Como era uma animação, foi com a minha voz. Meu pai foi ao cinema e ouviu a minha voz quando estava indo pegar pipoca. Depois entrou na sala e viu minha versão animada; ele ficou enlouquecido."
Sobre o personagem, ele conta que Searcher foi sendo construído aos poucos, ao longo de mais de um ano de preparação. "Os animadores começam observando seu rosto, seus movimentos, suas expressões faciais e, então, o personagem vai lentamente se transformando em você, enquanto você passa por uma transformação extraordinária também. Acabei dando muito de mim, mesmo sem perceber."
Para a atriz Gabrielle Union, de 50, que vive Meridian Clade (mulher de Searcher e mãe de Ethan), o fato de sua versão animada ter seus traços é ainda mais relevante. "Tenho uma garotinha negra em casa que é obcecada por cabelos, então quando ela viu a textura dos fios da Meridian, seus cachos, além de todo esse movimento a respeito do cabelo natural, foi algo muito grande", conta. "E não é só isso, ela tem traços afrocêntricos, formas, quadril, isso é ótimo."
Enquanto isso, na outra ponta do conflito geracional da família Clade, está o personagem de Dennis Quaid, de 68, que ele considera um pouco cabeça-dura. "Ele se acha o melhor explorador que o mundo já conheceu", afirma. "Ele quer que o filho carregue esse legado. Acho que tanto Searcher quanto Jaeger são um pouco hipócritas sem saber, ambos acabam fazendo a mesma coisa um com o outro."
Ambiente
Ele também lembra que o filme, de certa forma, carrega uma mensagem ambiental. Na trama, eles moram na fictícia Avalônia, que é mantida com base em uma planta misteriosa que serve como combustível para a cidade. O vegetal foi descoberto por Searcher e seu pai, mas, enquanto o primeiro quis se fixar e formar família, o segundo preferiu continuar com a vida de explorador. Em determinado momento, a planta começa a ficar mais escassa.
"Tanto os dois quanto o Ethan estão buscando a mesma coisa", avalia. "Eles só têm formas diferentes de tentar salvar Avalônia. Aí vamos acrescentando camada sobre camada. Eu senti como se fosse uma família real, discutindo questões de que discordam na mesa de jantar, sabe? Não tentamos fugir dos assuntos ou encobri-los, e é bem divertido."
Já o diretor da animação, Don Hall (de "Raya e o último dragão"), revela como surgiu a ideia do filme. "Eu estava pensando sobre meus filhos e sobre o mundo que eles herdariam, isso é o que estava na minha mente quando comecei tudo", conta. "Por isso quis contar uma história de como podemos ser bons ancestrais por meio de três gerações. Sou pai e meu pai também é muito central nessa relação, então acho que é algo com que todos podem se identificar." (VM - Folhapress)