Nascida nas periferias das grandes metrópoles, a cultura hip hop desfruta de uma centralidade ímpar neste fim de semana em Belo Horizonte – no mapa urbano, inclusive. Pela primeira vez contando com representantes de todos os estados do país, o coletivo Família de Rua (FDR) promove, neste sábado (3/12), sob o viaduto Santa Tereza, no Centro da cidade, a partir das 12h, a etapa final da 10ª edição do Duelo de MCs Nacional.
Ao mesmo tempo, a Praça da Estação e cercanias serão palco para o Festival Hip House, que promove, hoje e amanhã, um roteiro turístico que vai passar por espaços marcantes para o movimento na capital mineira, com diversas atrações pontuando esse percurso. Figuram nesse roteiro a Rua Sapucaí, o Teatro Espanca!, os bares 2Black Beer e Sula, o Centro de Referência da Juventude (CRJ) e, claro, o próprio viaduto Santa Tereza.
Vários marcos tornam esta edição do Duelo de MCs Nacional especial. Além da presença de representantes de todo o país, selecionados nas etapas estaduais, o evento completa 10 anos de realização e retorna ao espaço a partir de onde se projetou em uma edição presencial, após o hiato de dois anos provocado pela pandemia.
Mas apesar de sua importância e consagração no cenário nacional do hip hop, o Duelo de MCs ainda encontra dificuldades para levar adiante sua missão, conforme observa Pedro Valentim, o PDR, um dos fundadores da Família de Rua. A final da 10ª edição seria realizada hoje e amanhã, no Parque Municipal, com as presenças de renomados artistas de outros estados fazendo shows de encerramento, após as batalhas em cada dia.
Perda de patrocínio
A menos de uma semana da realização do evento, os planos tiveram que ser mudados. Na última segunda-feira, o coletivo postou uma mensagem explicando que, devido a “perda de patrocínio e uma sucessão de entraves institucionais”, a final do 10º Duelo de MCs Nacional estava migrando para o baixio do viaduto Santa Tereza.
A mudança de endereço implicou um rearranjo na programação, que agora está toda concentrada em um dia, sem os shows dos rappers fluminenses Azzy e Orochi (ambos de São Gonçalo) e do paulistano Rashid, e com acesso gratuito (para o Parque Municipal, os ingressos já estavam no segundo lote, à venda por R$ 60). Apenas o mineiro Douglas Din vai se apresentar logo mais, após o término das batalhas que vão definir o campeão da disputa.
“A ideia de fazer no Parque Municipal tinha a ver com poder receber mais gente e monetizar, para pagar as contas”, diz PDR. Ele explica que seria um palco grande, com potência de som e que justamente essa configuração conflitaria com um evento programado para o Palácio das Artes, contíguo ao parque. Esse foi um dos entraves institucionais de que a postagem fala, o que, somado à perda de um patrocínio importante, obrigou a mudança.
“Quisemos manter a data, não adiar, porque tem MCs do Brasil inteiro com passagens já compradas. A gente encontrou essa alternativa, que é voltar para o viaduto, fazendo tudo no sábado e cancelando os shows dos artistas de fora. Faz todo o sentido acontecer ali, que é o lugar que ficou identificado como a casa do Duelo de MCs”, afirma.
Ele considera que o Duelo de MCs, que está completando 15 anos em 2022, cumpriu uma trajetória muito feliz de realizações, o que tem a ver não só com o envolvimento da FDR na empreitada, mas também com a entrega do público e dos artistas. “Não é para ficar chorando pitangas, mas, na prática, apesar de toda a estrada, de todas as conquistas, que nos dão muito orgulho, a gente continua tendo dificuldades”, diz.
Etapas estaduais
Entre agosto e o início deste mês, o coletivo Família de Rua viajou para os quatro cantos do país, para acompanhar as etapas estaduais das batalhas de MCs. “Fomos criando essa expectativa em cada um dos estados brasileiros para o Duelo Nacional, estreitando essa rede, então é um momento de celebração, porque é muita energia somada”, ressalta PDR.
Ele diz que essa circulação nacional permitiu aos realizadores do Duelo de MCs identificar especificidades de cada cena e perceber, por exemplo, que o movimento é mais forte – ou ao menos mais visível – no Sudeste e no Nordeste. É importante criar um ambiente cada vez mais estruturado, que dê igualdade de condições para que todas as pessoas do país possam participar, conforme aponta.
“As batalhas de MCs estão presentes no país inteiro, não somente nas capitais; temos registro de umas 500 cidades participando desse processo. Em alguma esquina de qualquer cidade do Brasil vai ter uma batalha de MCs acontecendo”, diz. Essa capilaridade se traduz no alto nível dos concorrentes que participam da etapa final do 10º Duelo de MCs Nacional.
“A disputa vai ser muito acirrada. Tem uma galera do Sudeste e do Nordeste mais conhecida, nomes que chegam como favoritos, mas tem muita gente correndo por fora e que pode chegar com o pé na porta, surpreendendo. O Duelo Nacional tem um processo seletivo que é duro, com muitas etapas, então requer preparação, por isso se dar bem tem mais a ver com constância do que com visibilidade”, aponta.
Um time de peso vai marcar presença na maior batalha de MCs do país. Clara Lima, Allan Freestyle, MC Noventa e Alança vão compor o júri. Quem comanda as pick-ups são os DJs LB e Cia. E além de fazer o show de encerramento, Douglas Din cumpre a função de apresentador, ao lado da MC Colombiana. Ela, a propósito, é um exemplo de como a cultura hip hop e iniciativas como o Duelo de MCs podem ser transformadoras.
VEJA:
PDR, Colombiana e Douglas Din falam sobre o rap, o Duelo de MCs e a força do hip hop mineiro no "Divirta-se Podcast"
Mudança para BH
Colombiana, cuja certidão de nascimento registra o nome Samai Fernandes, diz, sem hesitação, que o hip hop salvou sua vida, na medida em que a tirou da rua, do vício e do crime. Ela conta que veio de Nova Serrana, na região Centro-Oeste de Minas Gerais, para Belo Horizonte por causa do Duelo de MCs.
“Meu primeiro contato com o Duelo, que conheci por meio do YouTube, foi em 2017, quando participei umas duas vezes da batalha embaixo do viaduto. Em 2018, fui presa por tráfico e cumpri pena de um ano. Assim que saí, entendi que, de duas, uma: ou eu ia mergulhar de cabeça na cultura hip hop e viver disso ou eu ia acabar morrendo naquele rolê em que eu estava”, conta Colombiana.
Ela revela que, depois que saiu da cadeia, ainda ficou seis meses usando tornozeleira eletrônica. “Tirei a tornozeleira numa sexta-feira e no domingo já colei no Duelo, rimei, mas saí de lá direto para o hospital, descobri que estava com tuberculose”, lembra. Ela conta que, mesmo impedida de participar das batalhas por causa da doença, se manteve próxima da FDR.
PDR e Léo Cezário (também um dos fundadores do coletivo) se empenharam em criar oportunidades de emprego para ela – por exemplo, como apresentadora em um dos palcos do Festival Planeta Brasil. “Me sinto acolhida de todas as formas possíveis. Eles estão comigo em todos os momentos, cuidando, e, inicialmente, sem nem me conhecer, só entendendo meu lugar na sociedade”, destaca.
Esse lugar, ela considera, é o mesmo que a cultura hip hop propõe desde suas origens, há mais de quatro décadas. “O hip hop nasceu com o intuito de salvar a vida das pessoas pretas, criar um ambiente de luta contra o racismo que mata o preto e o pobre, um ambiente em que a gente possa viver e ser quem a gente é sem ser oprimido e marginalizado. Afirmo com todas as palavras: se não fosse o Léo, o Pedro, o Duelo de MCs, possivelmente eu já não estaria viva.”
ROTEIRO TURÍSTICO PELA HISTÓRIA DO HIP HOP EM BH
Enquanto as batalhas de rimas estiverem em curso no baixio do viaduto Santa Tereza, os interessados na cultura hip hop também podem participar, gratuitamente, de um roteiro turístico proposto pelo Festival Hip House. Idealizado pelos produtores Luan Lima, Letícia Fox, Vitor Gonzaga e Wesley de Oliveira Castro, o evento vai contar com guia turístico e agentes culturais, para contextualizar a relação dos locais previstos no roteiro com a história do hip hop na cidade.
Apesar de locais como a Praça Afonso Arinos, o Terminal Turístico JK e a Galeria Praça Sete serem marcantes para a história do hip hop em Belo Horizonte, a caravana do Festival Hip House vai se concentrar na Praça da Estação e seu entorno, por ser, hoje, um ambiente muito pulsante, segundo Luan Lima.
“O que a gente propõe é um passeio turístico underground, atrelando conhecimento histórico e atrações, com shows musicais, apresentações de dança, grafite ao vivo, entre outras atividades”, diz.
O Festival Hip House foi criado em 2019, contando com shows, apresentações de DJs, palestras, performances de b. boys e grafite nos centros culturais Urucuia e Vila Marçola. Em 2020, com a pandemia, o evento migrou para o ambiente virtual.
Agora o Festival Hip House volta à carga com a proposta inédita de um roteiro turístico, o que se alinha com edital lançado pela Belotur. “A ideia é fazer um passeio com a galera, agregando conhecimento histórico e arquitetônico, focando no patrimônio e fazendo esse link com a cultura hip hop em Belo Horizonte”, diz Luan.
Ele considera que o fato de o circuito ocorrer no mesmo fim de semana e na mesma região que a final do Duelo de MCs Nacional foi uma feliz coincidência. “A gente já tinha marcado essas datas junto à Belotur e optou por não mudar. É interessante que sejam iniciativas concomitantes, porque nos ajuda a contextualizar. O Centro da cidade vai estar bem efervescente neste fim de semana. Vai ser lindo”, aposta.
NA BATALHA
Confira os concorrentes do Duelo de MCs
Nega Ruiva (MG)
Hougue (PE)
Hope (AM)
Bispo (RR)
HC (RO)
Thug Dog (AC)
CH (ES)
Mendes (SC)
Dubaile (RS)
Guxtta (TO)
Kaemy (GO)
Nono (DF)
Épico (MA)
Tonhão (CE)
Mexicano (RN)
Akuma (PB)
Klebin (AL)
Will (SE)
Havel (MT)
CJ (MS)
Allan (PR)
Big Mike (SP)
THG (PA)
Ayala (AP)
Thorment (RJ)
Ecaep (PI)
Japa (BA)
MZS (MG)
Peter do Busão (ES)
IDK (ES)
Alê (RJ)
Youngui (SP)