Jornal Estado de Minas

LITERATURA

Viagem afetiva à África deu o prestigiado Jabuti à mineira Anna Cunha


Um concurso ganho e um prêmio perdido por causa de minúcia acabaram fazendo com que a ilustradora mineira Anna Cunha, de 37 anos, ganhasse o Jabuti 2022, mais tradicional premiação literária do Brasil. Esta é a história de “Origem”, vencedor na categoria Ilustração da 64ª edição do prêmio.





Corria o ano de 2018 e Anna, com dezenas de histórias (dos outros) ilustradas, decidiu fazer a sua própria. Seu objetivo naquele ano era se inscrever no Concurso João de Barro, criado há quase quatro décadas pela Prefeitura de Belo Horizonte e voltado exclusivamente para a literatura infantojuvenil.

Anna escreveu e ilustrou “Origem”. Venceu o João de Barro. Só que o documento de atestado de débito trabalhista faltou em sua ficha de inscrição. “No edital não ficava claro, o pedido (do atestado) estava escondido. Consegui o documento, entrei com o recurso, mas não adiantou.” O João de Barro foi perdido.

A força do corpo africano chamou a atenção da autora mineira (foto: Anna Cunha/divulgação)
 
O livro ficou na gaveta, enquanto Anna continuava ilustrando títulos de outros autores. Ela acabou conseguindo editora para publicá-lo, a curitibana Maralto Edições, que prioriza obras que façam conexão entre literatura e artes plásticas. Mas veio a pandemia e a obra ficou parada. Somente em 2021 “Origem” foi publicado.




O Jabuti, Anna comenta, é um incentivo e tanto “para acreditar no meu trabalho autoral”. Ela admite que pensou em desistir no meio do caminho. “Fiz um livro (‘Cisco’) em 2013, ganhei menção honrosa no João de Barro. Mas ele nunca foi publicado. Estava bastante desanimada.”

Tanto “Origem” quanto “Cisco” fogem do comum. “São livros que escapam de definições, um pouco sem lugar. Não têm texto infantil, mas, ao mesmo tempo, são ilustrados. São ou não para crianças? Para mim, isso não importa, pois os bons livros infantis são para todas as idades. Comercialmente, no entanto, acaba sendo difícil encontrar editoras que se interessem.”

“Origem” nasceu da viagem que Anna fez pela África, em 2017. Durante dois meses, a bordo de um caminhão, ela percorreu oito países.

“Comecei a ficar muito tomada por algumas imagens. A brincadeira das crianças me marcou ao longo da viagem. Elas não tinham objetos, brinquedos, então brincavam com coisas da terra, sementes, galhos, o que achavam disponível na natureza. E também com o corpo de uma forma potente, o que me emocionou muito.”




Jornada africana

Ao retornar a Belo Horizonte, Anna levou um tempo até se sentar para escrever e ilustrar, ainda impactada pela viagem. “Foi meio desordenado, caótico. Imagens no livro, como de crianças embaixo de uma árvore, era o que eu via o tempo todo, a cada vilarejo. Ao mesmo tempo, certas frases começaram a chegar e, de maneira pouco planejada, imagem e palavras foram sendo construídas juntas. No final, ficou uma espécie de prosa poética.”

Anna Cunha diz que seus livros 'são um pouco sem lugar' (foto: Anna Cunha/divulgação)
Antes do Jabuti por “Origem”, Anna havia sido finalista do prêmio em outras três ocasiões, mas sempre como ilustradora de obras de outrem. Ela soma ao menos 30 livros ilustrados – e já tem três títulos já fechados para trabalhar em 2023.

Graduada em artes plásticas pela Universidade do Estado de Minas Gerais (Uemg) – também se formou em ciências biológicas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mas nunca atuou no meio –, Anna trabalha com ilustração desde a juventude. Aos 18 anos, começou pelas próprias produções: cartões, caderninhos e agendas, que passaram a ser comercializados.





No meio profissional, ilustrou para revistas, atuou no segmento do design gráfico e da publicidade, até que em 2011 estreou no mercado editorial. Depois do primeiro livro ilustrado, “Vestido de menina” (Peirópolis), de Tatiana Felinto, não parou mais. Com raríssimas exceções, como o conto “A instrumentalina” (Peirópolis), da autora portuguesa Lídia Jorge, todos os títulos são voltados para o público infantojuvenil.
 
As figuras femininas são muito presentes. “Quando o personagem não tem gênero definido pelo texto ou pelo projeto, minha tendência é ilustrar menina ou mulher. Acho que já instintivamente faço disso um trabalho político”, comenta.
 
O negro tem destaque na obra de Anna Cunha (foto: Anna Cunha/divulgação)
 

Imagens de pessoas negras também são uma constante. “Isso faz parte do meu trabalho desde o princípio. Parte do interesse de olhar para a cultura brasileira, para a diversidade, e de estar atenta ao que nos diz respeito.”





Mesmo com a demanda para o mercado editorial, Anna continua produzindo sua linha em papelaria. Além de cartões e cadernos, há pôsteres, azulejos, porta-copos, carimbos e roupas para bebês comercializados em lojas de museus, livrarias e no site annacunha.com.
 
"Circo", de Anna Cunha (foto: Anna Cunha/divulgação)
 

Atualmente, o papel, o lápis e a tinta perderam espaço para o meio digital, no qual ela faz a maior parte de suas ilustrações.

“A ilustração digital vem da pesquisa de linguagem pictórica. Para mim, não tem diferença se eu tivesse pintado à mão. O processo, semelhante ao da pintura analógica, me instiga, pois tive que desenvolver a minha linguagem para trabalhar”, finaliza.

(foto: Maralto/reprodução)

“ORIGEM”

• De Anna Cunha
• Maralto
• 40 páginas
• R$ 44,90
• À venda em www.annacunha.com