Dias difíceis moldaram “Baiana”, o mais recente álbum de Daniela Mercury: um trabalho denso, caudaloso, engajado e revolucionário, que, no entanto, não perde de vista a alegria. O disco, que chegou às plataformas na última sexta-feira (2/12), enfileira 14 faixas, a maior parte composta – letra e música – pela própria artista durante o período da pandemia.
O teor político é explícito em algumas delas, como no single “O samba não pode esperar”, lançado antes do primeiro turno das eleições presidenciais, e em “Mulheres do mundo”. Na quase totalidade das músicas, contudo, o que se tem é um panorama da atual situação no Brasil e no mundo, com foco no Nordeste, que, conforme aponta Daniela, se impõe em termos de ritmos, temáticas e inspiração.
Durante a pandemia, a cantora produziu freneticamente – escreveu cerca de 60 canções, entre músicas completamente acabadas e esboços bem encaminhados, que entregou a parceiros produtores e compositores.
O combustível para a criação, traduzido em texto de apresentação do álbum escrito pelo produtor e jornalista Marcus Preto, “variou entre o presente imediato e desolador do isolamento – e nisso estão incluídas as questões sociais e políticas que, em tantos sentidos, fizeram adoecer o nosso país – e um passado bem mais acolhedor, resgatando memórias de infância e adolescência”.
A gente tem sempre muitos desafios, e o Brasil os renova constantemente. Precisamos de sonhos e motivos para lutar todos os dias. Cada música tem uma razão de ser
Daniela Mercury, cantora e compositora
Engajamento político
“A gente tem sempre muitos desafios, e o Brasil os renova constantemente. Precisamos de sonhos e motivos para lutar todos os dias. Cada música tem uma razão de ser”, diz Daniela, em entrevista por telefone ao Estado de Minas. Ela aponta, por exemplo, que sentiu muita necessidade de escrever sobre a luta das mulheres pela democracia no país ao longo dos últimos tempos, estabelecendo um paralelo com a Independência, cujo bicentenário é celebrado este ano.
Engajada politicamente – o que garante ser uma herança de família –, Daniela diz que esteve ao lado de muitas mulheres em protestos, mobilizações e eventos de todo o tipo contra as ameaças à democracia que pontuaram o governo Bolsonaro. Ela explica que “Mulheres do mundo” é uma música que dialoga e se desdobra a partir do primeiro single.
“Eu tinha feito ‘O samba não pode esperar’, uma música contra o fascismo, que fala do horror que é o fascismo e desse novo movimento da extrema direita mundial. Participei da campanha ‘Ele Não’ (contra a eleição do atual presidente) desde o início, e essa campanha se manteve, durante esses quatro anos, contestando, muito sustentada pelas mulheres”, diz, destacando as diversas frentes de oposição ao governo.
Mulheres na luta
“Foi importante que tenhamos feito isso tudo juntos, toda a sociedade civil, professores, trabalhadores de todas as áreas, estudantes, artistas, profissionais da saúde, mas achei que falar sobre a importância das mulheres na luta pela democracia era o mais bonito e o mais importante agora”, salienta.
Ela considera que, apesar do resultado das eleições, o país ainda está longe de encontrar um ponto pacífico de segurança social e solidez democrática, em função de questões que deveriam ter sido resolvidas a partir do fim do regime militar e não foram. Dizendo-se apaixonada pelo Brasil, Daniela ressalta que atua como ativista há mais de 30 anos, em várias áreas, e que o país ocupa um lugar central em sua arte.
“Temos uma democracia frágil, que esteve sob ameaça sem sequer ter chegado ainda em todos os lugares, nas periferias, nos sertões. São populações que não usufruíram ainda de uma democracia plena e efetiva. Minha música sempre teve essa profundidade, meu axé sempre foi ligado a essas questões”, aponta.
“O canto da cidade”
Lado a lado com a política, “Baiana” também evoca “O canto da cidade”, álbum fundamental de sua trajetória, que completa três décadas de lançamento agora em 2022. “Foram muitas as memórias que me vieram durante a pandemia, da infância e da adolescência, junto com a vontade de estar cantando para minha gente, falando da minha gente. Mesmo com uma carreira internacional, meus vínculos seguem os mesmos”, diz.
Em termos de sonoridade, ela sublinha, em “Baiana”, a prevalência do ijexá e do samba, em suas mais diversas e possíveis variações – originalmente, inclusive, o álbum se chamaria “Samba”. O samba de roda de Santo Amaro da Purificação (BA), terra de Caetano Veloso – homenageado na faixa “Caetano filho do tempo” –, é um fio condutor importante, segundo a cantora.
Na música que compôs em tributo ao conterrâneo, aliás, Daniela diz que, além do samba de roda, misturou bossa nova, o samba afro do Olodum, o samba reggae do Ilê, samba canção, pitadas de rap, e que o resultado lembra os sambas arrastados clássicos da MPB, como os que Alcione gravou. “Virou uma música cheia de harmonias”, diz, destacando que “Baiana” é um álbum alinhado com uma MPB castiça que deriva de Ary Barroso e Dorival Caymmi.
Subversão de cânones
Ao mesmo tempo, ela observa que seu novo trabalho subverte alguns cânones do axé – entendido como gênero definidor de uma certa música baiana – na medida em que prescinde de refrãos em boa parte das faixas. Some-se a isso as letras longas, com pouca ou nenhuma repetição.
Daniela aponta que compõe desde muito jovem e, assim, pôde observar, ao longo do tempo, o desenvolvimento de certas estruturas ligadas à música de carnaval produzida na Bahia. Ela diz que, tocando suas próprias composições no formato voz e violão, se deu conta de que elas tinham refrãos demais.
“Resolvi transgredir essas estruturas; mudá-las é algo que também renova e areja o trabalho. A gente tem que desconstruir o que está feito, para abrir espaço para que o novo apareça. Fiz isso quando trabalhei com música eletrônica. Procuro sempre quebrar as regras”, diz. Sobre as letras extensas, ela aponta que se filiam a uma “escola” que passa, por exemplo, por Jorge Ben Jor.
Letra de Zé Celso
Uma dessas músicas com letras caudalosas é “Macunaíma”, com texto de Zé Celso Martinez Corrêa e do também ator, dramaturgo e diretor Fernando de Carvalho, que Daniela musicou. A lírica da dupla de autores celebra a Semana de Arte Moderna e parelha nomes como Mário de Andrade, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade com Fernanda Montenegro, Emicida, Elza Soares, Pabllo Vittar e Anitta.
A letra é embalada por uma fusão do galope nordestino com o kuduro africano – ritmos de cadência acelerada. “Pedi a Zé Celso e Fernando uma letra e eles me entregaram esse manifesto lindo, que adorei, achei divertido, interessante. Zé Celso é a juventude em pessoa, de uma lucidez impressionante sobre o momento presente, o passado e o futuro”, diz Daniela.
Ela conta que falou para Juliano Valle, produtor da faixa, que precisava de um ritmo rápido para conseguir encaixar o texto extenso. “Comecei a musicar pela sonoridade do palavreado”, diz, chamando a atenção para o fato de que tem intimidade com o rap e o repente. “Não me aperto com a quantidade de palavras, não. Palavra também é ritmo, elas são muito boas para suingar, mas é importante que digam alguma coisa”, pontua.
Lavra alheia
Em um disco que nasceu de um impulso autoral, ela incluiu seis temas de lavra alheia: “Disparo a flecha”, de Mikael Mutti (que também comparece como um dos produtores), “Bombinha”, do sueco-pernambucano Posada, “Me dê” e “Deixa rolar”, ambas do pernambucano Martins, “Intimidade com a entidade”, de Aila Menezes, Deco Simões, Emerson Taquari, Leo Reis, Mikael Mutti e Sergio Rocha, e “A felicidade”, de Tom Jobim e Luiz Bonfá.
Daniela diz que essas escolhas passam por um “crivo intuitivo”, pelo qual ela simplesmente ouve, gosta, canta e expressa para o autor sua vontade de gravar. Ela destaca, ainda, o desejo de apresentar um trabalho matizado. “Martins, por exemplo, fala de amor de um jeito que eu não falaria, trazendo os temas para um lugar menos denso”, exemplifica.
“Não é fácil equilibrar um disco sob esse conceito de álbum. Hoje em dia, com o streaming, ouve-se muito a música de forma isolada, mas acho gostoso apresentar uma obra que tem começo, meio e fim, que tem um ecletismo dialógico, que se completa. É como uma exposição de arte, que permite percepções distintas dentro de um mesmo momento”, acrescenta.
Não é fácil equilibrar um disco sob esse conceito de álbum. Hoje em dia, com o streaming, ouve-se muito a música de forma isolada, mas acho gostoso apresentar uma obra que tem começo, meio e fim
Daniela Mercury, cantora e compositora
Espelho e contraponto
Ela chama a atenção para o fato de que “A felicidade” cumpre uma função dupla no álbum: de espelho do momento em que as músicas foram compostas e de contraponto ao que ela pretendeu com o conjunto da obra, após fazer a seleção do que seria gravado. Daniela observa que as memórias e percepções que geraram o disco vieram durante a pandemia. Ela, entretanto, não quis levar para “Baiana” a tristeza desse momento.
“Eu quis agora, sim, trazer profundidade e reflexão. Depois eu canto a tristeza que ficou guardada nas músicas da pandemia que não entraram no disco. Aliás, ‘Baiana’ já tem esse canto triste em ‘A felicidade’, ela já diz por mim o que foi esse momento”, diz, pontuando que ela é, antes de mais nada, uma grande “defensora da alegria contra o fascismo”.
“Sou ‘oswaldiana’, acredito na alegria como cura. Falo isso em muitas músicas. Não sou guru de ninguém nem gosto de ficar ensinando ninguém a viver, mas música é um alimento fundamental para mim, para eu viver, porque me traz a alegria possível, que, muitas vezes, se resume ao fato de a gente se lembrar da nossa humanidade, da natureza, das coisas simples”, afirma.
“BAIANA”
• Daniela Mercury
• 14 faixas
• Disponível nas principais plataformas