Como qualquer arte, o cinema é um espaço de memórias, mas há algo particular na atual frequência de produções que lidam com esse tema. Dos filmes de nostalgia, como "Belfast", aos projetos crepusculares de diretores consagrados, como "O irlandês", o ato de investigar o próprio passado deixou de ser efemeridade para virar commodity.
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A narrativa segue em um formato mais ou menos tradicional, mas já aí se expõe o artifício da produção, que trata de investigar cenas tão fraturadas quanto as cenas pixeladas na TV – uma continuidade possível apenas no arcabouço da memória.
O centro das atenções é a relação da pequena Sophie, papel de Frankie Coiro, com o pai, Calum, vivido por Paul Mescal, que em algum ponto dos anos 1990 se reúnem para férias em um hotel na região da Turquia. Em certa altura, entendemos que a história é vista pela perspectiva de uma Sophie já adulta, que remonta aos eventos da viagem a partir das gravações e de suas próprias recordações.
Não que algo bombástico aconteça em "Aftersun", mas é justo aí que mora a graça do longa. À primeira vista, as férias de Sophie com Calum são corriqueiras como qualquer viagem em família, das brincadeiras aos atritos. Quem espera grandes acontecimentos pode se frustrar.
Mas como toda boa história, há uma tensão a ser resolvida, e sua identidade move tanto a trama quanto a investigação de Sophie. Confunde-se de propósito a narrativa com as visões da Sophie criança e adulta, que vivem momentos de passagem.
Por um lado, ela encara a chegada da adolescência, com todo o puxa e repuxa clássico entre os novos interesses e a dedicação ao pai. Por outro, passa por aquilo que seria a grande revelação do longa, que reorganiza a visão do espectador na reta final.
A conjunção das cenas em película com as gravações digitais caseiras reforça a fragmentação do relato feito pela protagonista ao espectador, e é nessa estética do desencontro que nasce de vez o longa. O eixo é Calum, e sua presença habita a luminosidade da infância e a melancolia da maturidade.
O mais interessante, porém, é que o filme trabalha com um mistério a não ser resolvido. Se Wells preferiu até o momento se resguardar do debate sobre o projeto ser ou não verídico, a narrativa revela sozinha que, em algum nível, a experiência de Sophie em revisitar o passado espelha a da diretora, que começou a escrever o projeto na mesma idade da personagem quando adulta.
"Aftersun" lembra muito "A filha perdida", outro longa recente situado nas praias do Mediterrâneo e que tem na memória um mistério. Os filmes existem em polos opostos de uma mesma esfera, mas a obra de Wells se sai melhor que a adaptação de Elena Ferrante porque se permite à expansividade.
Os elencos denotam isso. Se o triângulo materno organizado por Maggie Gyllenhaal se esvaziava no princípio de que Jessie Buckley era apenas a âncora a explicar tudo por flashbacks, a direção de Wells permite a Mescal e Coiro uma intimidade que registra nos pequenos atos a dimensão dúbia da imagem.
O ator é a melhor parte dessa narrativa de memória. Sua facilidade em transmitir estados de espírito pelo corpo molda o personagem de Calum na narrativa, dando potência a experimentos mais arriscados da direção.
"Aftersun" não é perfeito. É notável o quanto a diretora se esforça para sobrecarregar de sentido a narrativa na reta final, buscando preencher o propósito vazio. Algumas alegorias também saem mais tortas que eficientes.
Mas é na passagem de bastão simbólica do desfecho que se percebe a força do aparato montado, e tudo retorna à primeira cena. "Eu estou fazendo 11 anos e você 31", diz Sophie ao pai, enquanto aponta a câmera. O grande mérito do filme, enfim, é situar essa verdadeira distância emocional de pai e filha, sem se render a soluções de autoajuda.
“AFTERSUN”
(Reino Unido, EUA, 2022, 102min) Direção: Charlotte Wells.Com Paul Mescal, Frankie Coiro e Celia Rowlson-Hall. Classificação 16 anos. Em cartaz no Cineart Ponteio (18h50, 21h10), UNA Cine Belas Artes (14h, 18h30) e Centro Cultural Unimed-BH Minas Tênis Clube (18h20).