“Quando o mundo quiser de você a mediocridade, convém ouvir Itamar Assumpção. O preto velho e sábio aparece como lenitivo para esse tipo de agressão”, escreve Cidinha da Silva em uma das crônicas de “Exuzilhar”.
A autora continua o texto sobre o compositor e cantor, que morreu em 2003. “Quando propuserem brincar de casinha, enquanto você quer construir casa com fundação e alicerce para crescer rumo aos céus, convém desenhar a planta sob supervisão de Itamar, um gigante na arquitetura da palavra.”
Arquitetura da palavra
Com 20 livros publicados, entre crônicas, contos, textos para teatro e histórias voltadas ao público infantojuvenil, a mineira radicada em São Paulo também tem se esmerado na “arquitetura da palavra”.
Cidinha acaba de lançar a versão ampliada de “Exuzilhar”, livro publicado originalmente em 2019 e que sai agora com 10 crônicas a mais.
Nascida em Belo Horizonte, em 1967, Cidinha se deu conta do ímpeto para escrever suas próprias histórias na passagem dos 10 para os 11 anos, quando cursava a quinta série. Formada em história pela Universidade Federal de Minas Gerais, publicou sua primeira obra de literatura, “Cada tridente em seu lugar e outras crônicas”, em 2006, aos 39 anos.
Lançado há três anos, “Um Exu em Nova York” venceu o prêmio da Biblioteca Nacional na categoria conto. “Transito tranquilamente entre os gêneros, sempre atendendo ao que o texto me pede, ao formato que ele quer ter. Tenho um carinho grande pelas crônicas, mas os contos me desafiam mais”, diz.
Na bibliografia de Cidinha, alguns aspectos sobressaem, como a presença da espiritualidade de matriz africana, a exaltação da cultura negra no Brasil e a observação atenta da desigualdade de raça e de gênero. Em relação ao estilo, a capacidade de concisão se destaca, assim como a prosa com um acento lírico.
Todo esse pacote está representado, em maior ou menor grau, no título do livro. “'Exuzilhar' não é um conceito, é apenas um verboneologismo criado a partir de uma brincadeira com os nomes Exu e encruzilhada”, ela escreve. “'Exuzilhar' é um jeito de corpo que me ajuda a construir o movimento da minha escrita, num fluxo de águas e ginga.”
Cidinha une memórias de sua convivência com figuras simbólicas da negritude no país e comentários sobre a relevância dessas pessoas. Além de Itamar, surgem a ialorixá Mãe Stella de Oxóssi, a cantora Elza Soares, o coreógrafo e dançarino Ismael Ivo, e os compositores Luiz Carlos da Vila e Marku Ribas.
Sueli Carneiro, filósofa e fundadora da ONG Geledés – Instituto da Mulher Negra, é tema de uma das suas crônicas. “Sueli é presente em todos os aspectos da minha vida desde que a conheci, há 36 anos. Quando a encontrei, eu recém-entrara na vida adulta e, desde então, me beneficiei da maneira generosa e amorosa com que ela me acolheu em sua vida, como uma filha”, afirma Cidinha.
Segundo a escritora, Sueli ofereceu a ela “uma tela grande e ferramentas para que eu pudesse xilografar minha história”.
Orixás e africanidades
Outras crônicas de “Exuzilhar” trazem os orixás, como Ogum, Iansã e Oxum, para o primeiro plano. No entanto, o leitor não deve esperar neste e em outros livros de Cidinha textos de introdução a essas divindades – sua literatura não busca o didatismo.
“Meu interesse maior é construir mundos a partir das águas das africanidades e colocá-los para jogo, em interação ou em confronto com as referências de quem me lê”, afirma.
Chama a atenção, por exemplo, a forma como ela fala sobre Xangô, conhecido por empunhar o machado de dois gumes. No diálogo entre a umbanda e o catolicismo, capítulo importante do sincretismo no Brasil, esse orixá, associado à justiça e ao fogo, corresponde a São Jerônimo.
“Xangô não sabe escrever um nome na areia, esculpe-o na pedra. Seu consolo é saber que a pedra um dia foi água e a natureza das coisas permanece, mesmo quando muda de forma”, diz.
“EXUZILHAR”
.De Cidinha da Silva
.Editora Pallas
.88 págs
.R$ 37