Jornal Estado de Minas

CINEMA

Filme 'O menu' revela banquete intragável das elites com sua fome de poder



Algumas das cenas mais memoráveis do cinema se desenrolaram ao redor de mesas, das coxas suculentas e sensuais que Marcello Mastroianni devora em “A comilança” aos camarões possuídos de “Beetlejuice: Os fantasmas se divertem” ou o strudel sádico de “Bastardos inglórios”. Mas restaurantes, cozinhas e salas de jantar têm se tornado verdadeiros campos de batalha em filmes e séries mais recentes.





Em “O menu”, em cartaz nos cinemas, os pratos elaborados são munição para um roteiro que questiona, sem muita sobriedade ou calma, questões como privilégio, classe social e estruturas de poder. Para acirrar ainda mais os ânimos, Ralph Fiennes assume um chef sanguinário, ao qual não se deveria confiar um cutelo ou uma peixeira.

Jantar a R$ 6,6 mil

É com um desses que um de seus subordinados arranca o dedo de um comensal que vai a seu restaurante, localizado numa ilha isolada, numa noite dita especial. Restrito a poucos convivas, o jantar durante o qual o filme se passa reúne personagens que puderam pagar cerca de R$ 6,6 mil para estarem ali. Eles representam a nata da nata.

A experiência é embalada por pratos delicados, feitos a partir de ingredientes “colhidos, fermentados ou gelatinados”, porém carregados de mensagens que, pouco a pouco, expõem quão podres são os que os comem. Há, por exemplo, panquecas que tiveram a superfície dourada queimada por fotos que comprovam uma traição.




 



Aos poucos, as críticas vão se tornando mais contundentes e o clima de animosidade desencadeia uma verdadeira sessão de tortura, da qual a personagem de Anya Taylor-Joy, acompanhante de luxo que está lá por acaso, parece ser a única com chances de sobreviver – ela não se encaixa, afinal, no perfil de milionário ou famoso intragável do qual o próprio chef não escapa.

“O filme é um comentário sobre elitismo e riqueza, e sobre como tudo o que consumimos hoje, comida ou não, dá uma gratificação imediata, que não se prolonga”, diz Nicholas Hoult, que no filme vive um entusiasta da gastronomia sem muito amor próprio.

“Esses filmes estão em alta porque a desigualdade só aumenta e as pessoas abastadas que eles miram estão cada vez mais insaciáveis. Vivemos num mundo com pessoas que não param de acumular riqueza, mesmo não tendo meios para gastar tudo durante a vida. Nada pode satisfazê-las e isso não faz nenhum sentido”, completa Taylor-Joy.




 
Comida é fato social no longa dirigido por Mark Mylod (foto: 20th Century/divulgação)
 

Vômito no cruzeiro

“O menu” é só mais um numa ampla lista de filmes e séries que vêm causando indigestão na minúscula parcela mais abastada do planeta. Há poucos meses, o Festival de Cannes decidiu laurear outro ataque direto a essas elites – e, de quebra, ao patriarcalismo –, dando a Palma de Ouro a “Triângulo da tristeza”.
 
Nele, um jantar serve de expurgo coletivo para o público, que observa à exaustão os turistas ricaços de um cruzeiro vomitarem sobre ostras e vieiras durante a tempestade que chacoalha a embarcação.

A inescapável tomada aérea que enquadra pratos chiquérrimos logo começa a capturar fluidos que denunciam quão estragado está o caráter dos comensais, entre os quais um casal que fabrica armas para “garantir a democracia” em países menos influentes que sua Inglaterra.



Fato social 

“Sob o olhar das ciências sociais, a comida é um fato social total (atividade com implicações em toda as esferas), porque ela entrelaça questões e nos ajuda a entender conceitos abstratos da nossa sociedade, como classe”, explica Elaine de Azevedo, socióloga da alimentação da Universidade Federal do Espírito Santo e autora do podcast “Panela de impressão”.

“O cinema elege com frequência a mesa como espaço privilegiado porque nela dividimos comida, mas também emoções e sentimentos. Ela tem a capacidade de potencializar o roteiro, de revelar emoções, identidades e aspectos religiosos, sexuais e éticos dos personagens. Porque todo mundo come, nós podemos olhar para o mundo pela lente da comida”, comenta.

O recente “O poço” joga com a ideia de insaciabilidade ao pôr prisioneiros para dividirem um banquete, enquanto “Até os ossos” estreia agora com canibais que escolhem a dedo suas próximas refeições, e “A 100 passos de um sonho” dá abordagem agridoce ao imperialismo.





Entre as séries, “Nove desconhecidos” mostra quão disfuncionais são os ricaços de um retiro, entre uma golada e outra de smoothie, e “O urso” aproxima o rigor de uma cozinha Michelin ao de um pé-sujo que vende sanduíches.
 
E é diante de taças de aperol spritz ou crepes de Nutella que a segunda temporada de “The White Lotus” expõe a distância entre os hóspedes de um hotel de luxo e o mundo à sua volta.

Com a mão ostentando o drinque alaranjado, enquanto ondas se formam no mar siciliano logo atrás, um casal americano não fica tímido ao admitir que não lembra se votou nas últimas eleições e que não lê as notícias, porque não quer se chatear com os horrores que enclausuram aquela propriedade repleta de piscinas e lojas de grife.





“Você é o que você come”, lembra o historiador Henrique Carneiro, que coordena o Laboratório de Estudos Históricos de Drogas e Alimentação da USP e para quem a ingestão é o ato simbólico de se apropriar da realidade.

“A alimentação é a principal forma de representação metafórica da existência humana. A gente tem impulsos ligados à satisfação dos prazeres, mas a alimentação, junto com a sexualidade, está no fundamento da nossa cultura”, diz, sobre a frequência com a qual roteiristas e cineastas recorrem à comida e à bebida.

Verissimo à mesa

No Brasil, as telas se apropriam dos alimentos para delinear seus personagens e acirrar conflitos. “O clube dos anjos”, baseado na obra de Luís Fernando Veríssimo, põe sete personagens numa sequência de refeições que leva, um a um, à morte.





Glutões, eles se esbaldam em pratos fartos mesmo sabendo do perigo que correm diante do cardápio montado por um chef misterioso, e são, mais uma vez, insaciáveis. Classe e gênero são cutucados com a ponta da faca nas refeições feitas por um grupo exclusivamente masculino, pertencente à classe média alta e, salvo uma simbólica exceção, branco.

“O filme questiona o que leva aqueles tipos a estarem na mesa, num país em que metade da população enfrenta insegurança alimentar”, afirma o diretor Angelo Defanti.

“A reflexão sobre a gastronomia acontece porque ela é a única arte que para ser admirada plenamente precisa ser destruída, o que se relaciona com a ideia de finitude da vida”, diz ainda sobre a sede assassina do chef interpretado por Matheus Nachtergaele, que ecoa o de Ralph Fiennes. 

“O MENU”

EUA, 2022. Direção: Mark Mylod. Com Ralph Fiennes, Anya Taylor-Joy e Nicholas Hoult. Em cartaz em salas das redes Cinemark, Cineart e UNA Cine Belas Artes.