Clarice Lispector nasceu em 10 de dezembro de 1920 e morreu em 9 de dezembro de 1977. Nesta quinta-feira (8/12), véspera do aniversário de morte e antevéspera dos 102 anos do nascimento da escritora, chega aos cinemas o documentário “Clarice Lispector – A descoberta do mundo”, da diretora pernambucana Taciana Oliveira.
O filme, que teve sessões de pré-estreia na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), encerrada em 27 de novembro, costura falas em off da própria Clarice com depoimentos de pessoas próximas – amigos, familiares, escritores, editores – e documentos que ajudam a reconstruir a vida e a obra da autora de “A paixão segundo GH”.
“Fiquei impressionada com a forma que Clarice tinha de escrever. Me posicionei mais como leitora de sua obra, comecei a ressignificar a presença de Clarice no Recife, onde na década de 1990 ainda era pouco referenciada”, diz, aludindo à capital onde a escritora passou a maior parte da infância, entre 1925 e 1934, depois de um breve período em Maceió, onde a família, recém-chegada da Ucrânia, havia se instalado em 1922.
Ainda demorou um tempo para que Taciana procurasse, em 2006, o filho de Clarice, Paulo Gurgel Valente, a fim de pedir autorização para realizar o filme – que, originalmente, seria bem mais ficcional. A autorização foi dada, com a condição de que o projeto contasse com consultoria especializada.
Entrou em cena Teresa Montero, autora do livro “Eu sou uma pergunta: Uma biografia de Clarice Lispector” (1999), que em 2021 ganhou edição revista e ampliada sob o título “À procura da própria coisa”. A escritora e doutora em letras pela PUC-Rio acabou escrevendo o roteiro do documentário com Taciana.
Graças a um edital de financiamento do governo de Pernambuco, Taciana começou a colher depoimentos entre 2007 e 2008. “Depois a fonte de recursos secou. Segui com o apoio de amigos e cheguei a lançar um corte do filme, sem correção de cor e sem sonorização, para justificar o primeiro incentivo que tinha recebido.”
"Circuito complicado"
A diretora destaca o processo entrecortado de realização do documentário. “O filme demorou para acontecer. É muito difícil trabalhar com audiovisual no Brasil. Muitas pessoas achavam que por se tratar de Clarice Lispector seria fácil conseguir financiamento, mas não. É um circuito complicado”, ressalta.
A chegada da coprodutora Águeda Amaral, da Cabelo Duro Produções, contribuiu para levar o projeto adiante. Esse tempo dilatado de realização explica a presença de depoentes que já morreram, como Ferreira Gullar (1930-2016), Lêdo Ivo (1924-2012) e Alberto Dines (1932-2018).
Para chegar aos entrevistados, Taciana se baseou nas biografias lançadas por Teresa Montero e por Nádia Batella Gottlib (“Clarice: Uma vida que se conta”, lançada em 2013).
“A partir dessas obras, eu tinha referencial de quem poderia buscar. Muito do que se sabe de Clarice hoje se deve aos acadêmicos, a pessoas que passaram a pesquisar a vida dela. Selecionei alguns nomes e Teresa indicou outros”, conta a diretora.
O amigo Augusto
Um deles é o escritor pernambucano Augusto Ferraz, amigo de Clarice. “Gosto muito da entrevista com ele, porque era algo de que não se falava muito, da presença desse escritor como amigo e correspondente de Clarice em Pernambuco. Ele fala das cartas que ela escrevia dizendo que morria de saudades de Recife, que considerava sua terra, e também da visita à cidade, em 1976”, ressalta.
Depois do intervalo nas filmagens imposto pela falta de recursos, teve início a nova leva de entrevistas, com a artista plástica Maria Bonomi e o casal de escritores Marina Colasanti e Afonso Romano de Sant’Anna, entre outros.
“Maria Bonomi era comadre de Clarice. A relação de amizade das duas é de uma delicadeza sem tamanho. A entrevista que Marina e Afonso deram também foi muito boa. Eles são de uma tranquilidade e de uma afinidade incrível e eram muito amigos de Clarice”, pontua.
O mito da beleza
Uma questão recorrente, que emerge nas vozes de vários dos entrevistados, é a beleza da escritora. Taciana acredita que a boa aparência não chegou a atrapalhar ou ajudar a trajetória literária de Clarice, mas pondera que podia, sim, representar certo incômodo. E exemplifica com a fala de Clarice dirigida a Lygia Fagundes Telles: “Olha, não vamos rir, para poderem nos levar a sério”.“Clarice tinha o cuidado de que a beleza dela não sobressaísse. A gente tem uma explosão maravilhosa de autoras ao longo dos últimos anos, mas, naquela época, você contava nos dedos. Era um ambiente muito masculino. Mesmo com todo o talento, ela encontrou dificuldades para se impor como escritora”, diz.
A diretora observa que Clarice era muito querida por autores e intelectuais, como Fernando Sabino, Otto Lara Resende e Alberto Dines, mas mal conseguia receber direitos autorais.
“Ela escreveu ‘Perto do coração selvagem’ com vinte e poucos anos, mas era complicada a relação com o mercado editorial”, sublinha.
O documentário focaliza a presença de Clarice no jornalismo, o que, em vários momentos, foi a tábua de salvação financeira para ela. Clarice se envolveu desde muito cedo com as redações.
“É interessante, porque pouco se fala disso. Ela entrevistou Ferreira Gullar para a revista Fatos e Fotos, entrevistou Chico Buarque, Vinicius de Moraes, todos de maneira muito própria, muito peculiar. A coisa do jornalismo na vida dela foi se diluindo à medida que os livros iam sendo publicados, mas é algo que não perde a importância, apenas ficou em segundo plano, porque era mais uma questão de sobrevivência”, aponta Taciana.
“Clarice Lispector – A descoberta do mundo” não é filme guiado apenas por documentos e depoimentos. Há diversas imagens inéditas, gravadas pela diretora, sua equipe e o elenco formado por Andrea Veruska, Cristina Pereira, Elias Andreato e Eucir de Souza, que cumprem a função de ilustrar poeticamente o que é dito.
Tanto mar...
A água é recorrente nas imagens, seja do mar ou em outras locações. “Na exibição do primeiro corte, um amigo chegou e disse que tinha muito mar. Quando a gente foi exibir essa versão de agora, atualizada, em um festival de cinema latino-americano em São Paulo, um rapaz veio me dizer que era a coisa mais linda que tinha no filme”, conta Taciana.
A inclusão de tais imagens foi a forma que a diretora encontrou de tentar se colocar na obra, como intérprete das leituras que fez de Clarice.
“Esse tanto de mar está na obra dela, essa vastidão, o sentimento oceânico está muito presente. Também é uma referência à transitoriedade dela. Tem muito pássaro nas imagens ilustrativas. É uma leitura poética, realmente”, ressalta.
Taciana explica que esse tratamento remete ao trabalho que ela desenvolve há mais tempo com videoarte e videoperformance. E destaca a importância da trilha musical em diálogo com as imagens, o que decorre da forte relação de Clarice com a música.
“Em ‘A hora da estrela’, há homenagem tremenda aos compositores clássicos. Eu quis, mesmo, que a música tivesse, junto das imagens, papel determinante no documentário. Eu quis essa costura poética”, aponta Taciana.
Instada a definir quem foi Clarice Lispector, a diretora se exime de responder, dizendo que é um risco grande.
“Fico com a definição de Marina Colasanti: era uma mulher que escrevia livros, que tinha filhos, que cuidava da casa e era, sobretudo, uma escritora. Também gosto do que Maria Bonomi diz: Clarice ressignifica o papel da mulher na literatura.”
“CLARICE LISPECTOR – A DESCOBERTA DO MUNDO”
(Brasil, 2015, 104min, de Taciana Oliveira, com Andrea Veruska, Cristina Pereira, Elias Andreato, além de depoimentos de Ferreira Gullar, Alberto Dines e Nélida Piñon, entre outros) – Ensaio documental criado a partir da seleção de depoimentos da escritora, além de entrevistas com amigos e familiares. Em cartaz a partir desta quinta-feira (8/12), no Cine UNA Belas Artes 3, às 16h30