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Estado de Minas MEMÓRIA

Clarice, perto do coração

Escritora Clarice Lispector, que completaria 102 anos neste 10 de dezembro, gostava de dizer que 'literatura é vida, é vivendo'


10/12/2022 07:25 - atualizado 10/12/2022 07:30

Leila de Luca*
Especial para o EM


Clarice Lispector com os filhos Pedro e Paulo, em foto de 1954
Clarice Lispector completaria 102 anos hoje, 10 de dezembro. A escritora está com os filhos Pedro e Paulo, nesta foto de 1954 (foto: Badaró Braga/OCruzeiro/Arquivo EM/1954)

Chaya ou Clarice? Qual o nome por trás do nome? A mística ucraniana mais nordestina e brasileira que conheci. Conheci-a em todas as suas criaturas e em nenhuma ao mesmo tempo. Ângela, Joana, Lidia, Ana, Laura, Martim... Santa e pagã, mulher e menina, leoa e cachorro sem dono. Da incapacidade de se entender suas contradições e sentir sua poesia, compreende-se a alcunha de esfinge. Mas, longe de ser esse monumento inalcançável e indecifrável, era bicho-gente. Gritava isso em seus personagens.

 

Respirava o mundo nela. Ela conhecia a mulher loba muito antes de ser cantada por sua quase chará, Clarissa Pinkola Estés. Ligada às raízes femininas, vivia seu coração selvagem despertando e criando ao mesmo tempo em suas palavras o instinto feminino universal adormecido, presidiário de uma cultura que o alienou. Pegava sentimentos no olhar, soprava vida nas palavras e nelas se libertava ao mesmo tempo em que se acorrentava numa procura incurável. Velhas e sábias senhoras há muito já contavam que "uma história é um medicamento que fortifica e recupera o indivíduo e a comunidade".

 

Perdida em si mesma ainda no início de sua vida, foi capturada pelas palavras e através delas espreitava a vida de dentro. "A literatura é vida vivendo", disse. Ela nos remete com suas palavras-chave à substância da qual somos feitos ou, melhor, feitas, porque só homens com alma feminina aflorada podem captá-la.

 

As palavras, nas mãos de Clarice, são desconstrução da razão e descortinamento do sentir. Clarice debruçou-se sobre os ombros daquelas antigas mulheres e soprou em nossos corações a brisa congelantemente quente de se sentir, a um só tempo, num mundo tão carne e osso, opaco, e tão fantasticamente misterioso, iluminado. O espectro de seus movimentos internos alcança os ossos de nossas almas, levando a nos incomodar com nossas certezas. Pois que, como água-viva, movimentamos no líquido chamado vida que apenas vislumbramos, percebemos num insight, mas que escapa assim que tentamos moldá-la.

 

Chaya ou Clarice? O nome oculto é Mulher! Sopro molhado que se fez notável. Movimenta e vibra divinamente nos oferecendo lírios brancos ao que dói em nós.

 

*Leila De Luca é escritora, artista visual e taróloga


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