Poucos meses após o lançamento no Disney Plus da versão de “Pinóquio” dirigida (ou pior, cometida) pelo outrora competente Robert Zemeckis, surge esta versão assinada por Guillermo del Toro para a Netflix.
Leia Mais
Cineasta mineiro Guilherme Fiúza Zenha estreia como diretor de animação Filme de Taciana Oliveira revela a alma multifacetada de Clarice Lispector Filme 'Ela disse' mostra bastidores da reportagem que escanteou o machismoWill Smith está volta nesta sexta (9/12), como o escravo de 'Emancipation'Solidão a três no sertão baianoPresente para BH: exposição tem réplica da estátua de Drummond Emily terá mesmo coragem de abandonar Paris?Giramundo leva sua festa de 50 anos ao Parque Municipal, com entrada francaComo se podia esperar do diretor que assinou “Hellboy”, em 2004, e “O labirinto do fauno”, em 2006, sua visão é mais adulta e sombria que a de Zemeckis, o que faz com que seu “Pinóquio” esteja mais distante da adaptação original de 1940 e mais próxima da melhor adaptação feita até hoje, a de Luigi Comencini em 1972.
Isto a faz, consequentemente, ficar mais próxima, em tom e fidelidade, à história original de Carlo Collodi (1826-1890). Até mesmo no traço, mais passível de transmitir tanto uma paz infantil quanto a gravidade decadentista do fascismo.
Itália fascista
A ambientação da história na Itália de Mussollini, por um lado, enfraquece esteticamente o novo filme, que se torna mais óbvio, como numa cena de chacota com Il Duce. Ao mesmo tempo o faz ser uma importante voz de resistência ao avanço da extrema direita no mundo.
Há, por exemplo, a ideia da manipulação de mentes ingênuas por regimes totalitários. Pinóquio, mais do que o novo filho de Gepeto, torna-se máquina de guerra por ter vida eterna. Mais do que um menino de madeira que ganha vida pelo feitiço de uma fada, torna-se ao mesmo tempo exemplo de rebeldia contra a autoridade paternal e marionete pronta para ser manipulada.
Há ainda maior atração pelos aspectos monstruosos, tanto nas figuras mais realistas como nas mais fantásticas, como a fada azul e sua irmã das profundezas, num nível que pode torná-lo mais interessante para adultos, embora sem perder o encanto infantojuvenil.
O grilo falante, que recebe a voz de Ewan McGregor, parece muito mais um inseto do que sua versão bonitinha e barrigudinha da Disney. Procurando uma árvore para chamar de lar, ele encontra justamente a que vai servir para Gepeto fazer seu boneco. Logo, o grilo faz morada dentro do peito de Pinóquio.
O babuíno Spazziatura, curiosamente dublado por Cate Blanchett, parece um gremlin, o que talvez seja homenagem do diretor-produtor ao filme de Joe Dante. É um personagem interessante que se torna mais nuançado conforme a trama progride, tendo papel essencial na aventura.
Ele é subordinado ao Conde Volpe, o empresário picareta vê em Pinóquio a oportunidade de enriquecer. A voz de Christoph Waltz dá a esse personagem espessura interessante, tornando-o uma espécie de vilão carismático que Hitchcock aprovaria.
Essas escolhas se mostram acertadas e o filme jamais permite que seus momentos baixos sejam predominantes. A força na construção dos personagens impõe respeito a uma trama que recebe no geral modificações interessantes, mesmo quando sob o risco de facilidade nas soluções dramáticas.
Clímax convincente
De todas as adaptações, esta é a que melhor acerta em alguns momentos essenciais da trama. O da baleia, por exemplo, que é geralmente onde as outras patinam, ganha tratamento justo na aventura e no drama, ajudando a fazer do clímax um momento forte do filme, ao contrário dos clímaxes meio frouxos das outras versões, incluindo a de Comencini.
Por tudo isso podemos dizer que “Pinóquio” é um dos maiores acertos da carreira de Guillermo del Toro, um daqueles momentos em que reconhecemos sua sensibilidade mesmo por trás dos traços de uma animação. Na batalha do streaming, o diretor de “Hellboy” dá um chapéu na Disney.
"PINÓQUIO POR GUILLERMO DEL TORO"
EUA/México/França, 2021. Direção: Guillermo del Toro. Animação, com as vozes de Ewan McGregor, Cate Blanchett e David Bradley. Disponível na plataforma Netflix.