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Estado de Minas LITERATURA

'Feliz ano velho', o romance da geração Coca-Cola, ficou quarentão

Porta-voz da geração Coca-Cola, "Feliz ano velho" chega às quatro décadas. Marcelo Rubens Paiva lança edição especial nesta quinta (15/12)


15/12/2022 04:00 - atualizado 14/12/2022 22:40

Escritor Marcelo Rubens Paiva sentado na cadeira de rodas
Marcelo Rubens Paiva, de 63 anos, iniciou a carreira com "Feliz ano velho" e se tornou um dos escritores mais bem-sucedidos do Brasil (foto: Renato Parada/divulgação)
Numa noite de dezembro de 1982, Marcelo Rubens Paiva recebia seus amigos para o lançamento de seu primeiro livro, no Sesc Pompeia, em São Paulo. Paiva tinha 23 anos, cursava a Escola de Comunicações e Artes e era um completo desconhecido.

A data marcava o terceiro aniversário do acidente que mudara sua vida em 1979. Ao pular no açude de um sítio à beira da rodovia Bandeirantes, em Campinas, no interior paulista, Paiva quebrou a quinta vértebra cervical e comprimiu a medula. Ficou tetraplégico. O livro que lançava naquela noite, “Feliz ano velho”, começava com seu acidente.

“Subi numa pedra e gritei: – Aí, Gregor, vou descobrir o tesouro que você escondeu aqui embaixo, seu milionário disfarçado. Pulei com a pose do Tio Patinhas, bati a cabeça no chão e foi aí que ouvi a melodia: biiiiiiin. Estava debaixo d'água, não mexia os braços nem as pernas, somente via a água barrenta e ouvia: biiiiiiin.”

Mas, ao terminar, a obra fazia muito mais do que contar uma tragédia. “Feliz ano velho” era, ao contrário do que se poderia esperar, uma explosão de sexo, drogas e rock'n'roll.

"Você, Marcelo Rubens Paiva, inaugurou a revolucionária categoria do 'escritor pop star'. Porque absolutamente todo mundo te leu! Era você e Christiane F., anos 1980 na veia"

Maria Ribeiro, atriz


Geração AI-5

Ao descrever sua vida, Paiva falava das relações com suas namoradas, da maconha que formava os anéis esfumaçados de sua mente e das noites alucinantes nos clubes de São Paulo. E, assim, “Feliz ano velho” se tornou, além de fenômeno de vendas, o romance que representava uma geração. Um ícone.

Marcelo Rubens Paiva aos 23 anos
O autor aos 23 anos, quando lançou o romance pela editora Brasiliense (foto: Instagram/reprodução)
“A missão era retratar uma geração chamada de alienada, a 'geração AI-5', que cresceu durante a reforma educacional da ditadura militar, geração que Renato Russo imortalizou como geração Coca-Cola, considerada consumista, fútil e apolítica, numa época em que os pais proibiam os filhos de ler gibis”, escreve Paiva no prefácio da edição comemorativa dos 40 anos de “Feliz ano velho”, que sai agora pela Alfaguara.

A obra falava também, e muito, dos problemas decorrentes do acidente. Paiva mostrava o universo de deficientes físicos e do preconceito que sofriam, sempre associados a tristeza e doenças, “quando na verdade era um grupo muito bagunceiro, maluco, sarcástico, que conheci em encontros, viagens, congressos e centros de reabilitação”. “Quis falar abertamente de drogas. Quis falar de dilemas da virgindade. Quis falar do primeiro amor.”

O coquetel molotov criado por Paiva acertou no alvo. Segundo a lista dos mais vendidos da revista Veja, “Feliz ano velho” retirou o primeiro lugar de não ficção das mãos de “Eu, Christiane F., 13 anos, drogada, prostituída”.

“Você, Marcelo Rubens Paiva, inaugurou a revolucionária categoria do 'escritor pop star'. Porque absolutamente todo mundo te leu! Era você e Christiane F., anos 1980 na veia”, escreveu a amiga e atriz Maria Ribeiro na apresentação dessa nova edição.

Àquela noite de dezembro não faltou folclore. Luiz Schwarcz, hoje à frente do grupo editorial que relança “Feliz ano velho”, era um dos diretores da Brasiliense que publicava aquela primeira edição. Ao chegar à noite de autógrafos, se deu conta de que os livros não estavam lá.

“A biblioteca do Sesc havia comprado alguns títulos da Brasiliense e, quando perguntamos se os livros haviam chegado, responderam que sim. Mas estavam se referindo aos outros, não aos do Marcelo”, diz ele.

Schwarcz encontrou quem tinha as chaves do depósito da editora e conseguiu que os livros chegassem com duas horas de atraso.

“Era um livro importante para a Brasiliense, em especial para o Caio Graco (dono da editora, morto há 30 anos), que era amigo da família e visitava Marcelo no hospital”, lembra Schwarcz.

Mais do que isso, foi Graco quem achou que havia um livro na história de Paiva e pediu para que o rapaz o escrevesse. “Antes de ser publicado, o livro não era unanimidade na editora”, afirma o editor.

“Para quem não conhecia o Marcelo – e eu não o conhecia –, não imaginávamos que ele pudesse escrever um livro que representasse uma geração, estando naquela situação após o acidente. Nós não botávamos fé”, resume. “Mas foi uma grande sacada num momento histórico, uma obra-chave para a literatura brasileira. O Caio foi visionário e, após o lançamento, eu me dediquei muito ao livro. E fico muito feliz de agora estar lançando essa edição de 40 anos.”

Em seu prefácio, Paiva diz que o dia mais importante de sua vida não foi o dia da morte de seu pai, Rubens Beyrodt Paiva, nos porões da ditadura, quando ele tinha 12 anos. Nem o do acidente, quando tinha 20. Mas o dia em que Graco disse a ele “por que você não escreve sobre isso que está acontecendo?”.

"O livro do Marcelo, que estoura de vender, vira peça de teatro, vira filme. Uma geração se forma lendo esse livro"

Matinas Suzuki Júnior, jornalista


Literatura para jovens

Na época, a Brasiliense já era um fenômeno no Brasil. Após Graco assumir a direção da editora, em 1975, ele passou a lançar coleções de livretos que marcaram época, como a “Primeiros passos”, em 1980, a “Tudo é história”, em 1982, e, finalmente, no mesmo ano, a “Cantadas literárias”, pela qual saiu o livro de Paiva.

Essas coleções falavam com o público jovem, o que em si já era uma espécie de revolução. “Ninguém pensava em livros para jovens naquela época”, diz o jornalista Matinas Suzuki Júnior, editor da Companhia das Letras.
 
Malu Mader e Marcos Breda no filme 'Feliz ano velho'
Malu Mader e Marcos Breda no filme "Feliz ano velho", lançado em 1987 (foto: Tatu Filmes/reprodução)
 

Suzuki traça panorama que insere “Feliz ano velho” em um contexto político e cultural mais abrangente. Para ele, o livro de Paiva representa parte do braço literário de um movimento geral dos anos 1980 que pôs a cidade de São Paulo em evidência nunca antes vista na história do Brasil.

“São Paulo entra de um jeito na ditadura militar e sai de outro na volta da democracia. São Paulo já era rica, mas era provinciana. As grandes coisas vinham do Rio de Janeiro, ou da Bahia, que foi muito efervescente nos anos 1960. Politicamente, é em São Paulo que se gestam os dois partidos que dividiriam o poder nas próximas décadas, o PT e o PSDB. Também acontece no final dos anos 1970 a criação de uma nova geração do movimento estudantil que seria muito importante”, diz ele.

“Começam a aparecer sinais de todos os lados na vida cultural. A própria Brasiliense, que se torna a editora quente dos anos 1980, faz essa inversão com o Rio, de onde vinha a Civilização Brasileira, a Record, a José Olympio e muitas outras. Na literatura, há um movimento de poesia ligado ao surrealismo, com Roberto Piva e Claudio Willer. Também um novo renascimento da poesia concreta, com a publicação de 'Pós-Tudo', de Augusto de Campos. E, é claro, o livro do Marcelo, que estoura de vender, vira peça de teatro, vira filme. Uma geração se forma lendo esse livro.”

O próprio Sesc Pompeia, onde Paiva lançou o livro em 1982, havia sido inaugurado naquele ano e fora palco, dias antes, do festival punk O Começo do Fim do Mundo, organizado pelo dramaturgo Antonio Bivar.

 

 Marcia Brasil, André Frateschi, Claudio Fontana e Maria Ribeiro, atores da peça 'Feliz ano velho', que estreou em 2001
Marcia Brasil, André Frateschi, Claudio Fontana e Maria Ribeiro, atores da peça "Feliz ano velho", que estreou em 2001 (foto: Silvio Pozzato/divulgação)
 

Nos tempos do Radar Tantã

As danceterias dominavam a noite paulistana, com casas como Radar Tantã e Madame Satã se tornando referência para o país. No rock, bandas como Fellini e Akira S & As Garotas que Erraram se destacavam na cena independente, enquanto Ultraje a Rigor, Titãs e Ira! se tornavam conhecidos nacionalmente.

“Feliz ano velho” é uma das maiores marcas desses anos 1980 paulistanos. É estimado que tenha vendido 10 mil exemplares a cada mês de 1983. Mas os números aumentaram, conforme foi passando por outras editoras, como Siciliano e Círculo do Livro. Segundo cálculo informal recente feito por Paiva e Schwarcz, a obra pode ter vendido 1,2 milhão de cópias.

Quarenta anos depois, Marcelo Rubens Paiva retorna ao Sesc Pompeia, nesta quinta-feira (15/12), para o lançamento da edição comemorativa, que traz ainda um caderno de fotos com fac-símiles dos originais rabiscados, além de fotografias e reportagens da época.

Desta vez, é quase certo – a editora não vai se esquecer de mandar os livros para a noite de autógrafos. 

Capa da edição comemorativa de 40 anos do livro Feliz ano velho
(foto: Alfaguara/reprodução)
“FELIZ ANO VELHO – EDIÇÃO COMEMORATIVA DE 40 ANOS”

.De Marcelo Rubens Paiva
.Alfaguara
.312 págs.
.R$ 79,90
.R$ 39,90 (ebook)


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