Em 2023, o cantor e compositor Marcos Valle completa 80 anos e 60 de carreira. Cheio de pique, o carioca fará duas turnês europeias, uma em julho e outra em outubro. Talento globalizado da MPB, ele vai se apresentar também no Japão e nos Estados Unidos.
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Outra parceria que ele pretende reforçar em 2023 é com a cantora e compositora Joyce Moreno. “Fazemos muitas coisas juntos. E temos também grande identificação musical. Havíamos até conversado sobre isso mesmo antes da pandemia.”
Homenagem a Gal
Porém, a última parceria de Marcos e Joyce foi marcada pela tristeza. Os dois gravaram o single “A chuva sem Gal”, lançado logo depois da morte da cantora baiana Gal Costa, aos 77 anos, em 9 de novembro.
“Essa música nasceu de uma emoção muito forte. Quando recebi pela televisão a notícia do falecimento de Gal, eu e minha mulher, Patrícia, ficamos sem saber o que falar, o que fazer. Saí do quarto e fui para a varanda do nosso apartamento. Lá fora estava chovendo muito, fiquei ali pensando e me lembrando de tudo, da Gal e da história dela, enquanto o céu parecia derramar lágrimas”, conta.
Quando percebeu, Marcos já tinha a melodia quase pronta na cabeça. “Pensei a chuva sem Gal. Então, falei: Meu Deus, até a chuva sem a Gal é diferente.”
Inspirado em um sucesso da cantora – “Chuva de prata”, parceria de Ed Wilson e Ronaldo Bastos –, Marcos foi para o piano, ligou o gravador e registrou a melodia que fluía de sua mente. “Quando ficou pronta, imediatamente liguei para a Joyce, minha parceira querida. Eu sabia da ligação que ela também tinha com Gal”.
Joyce adorou. “Nós dois ali, emocionados com a história”, relembra Marcos. A parceira só lhe pediu um tempo para se tranquilizar diante de notícia tão triste. No dia seguinte, chegaram os versos. “A chuva sem Gal/ Caiu de mansinho/ Foi quase um carinho/ Molhou meu olhar/ Lembrando um Brasil brasileiro/ O sol desse canto certeiro”, diz um trecho da letra.
A compositora afirma que ao saber da morte de Gal Costa, foi como se um pedaço do coração do Brasil tivesse parado de bater. Logo em seguida a esse impacto, veio o pedido de Marcos. “Escrevi chorando muito. Até achei que não conseguiria, mas saiu na emoção da hora. No dia seguinte, fiz os últimos ajustes e mandei pra ele”, conta.
“Quando li, disse: Joyce é exatamente isso. Aí, ela entrou em contato com o pessoal da Biscoito Fino. Kati de Almeida Braga, proprietária da gravadora, ouviu, adorou a música e perguntou: Vocês podem gravar na semana que vem?”.
Marcos explica que procurou fazer um arranjo “tranquilo”, que não fosse triste. “Lógico que é triste, por ser o falecimento da Gal, mas queria certa leveza tanto na música quanto na letra. E conseguimos isso”, diz. “O arranjo teria de acompanhar a leveza que a Gal tinha na voz cristalina dela.”
Marcos, no piano acústico, Tutty Moreno, na bateria, Jorge Helder, no baixo, e Jessé Sadoc, no flugelhorn, criaram o arranjo. “Fizemos uma coisa bem enxuta”, explica Valle, relembrando a emoção do quarteto no estúdio. “Eu e Joyce colocamos as nossas vozes depois.”
Sentindo-se realizado por homenagear a cantora baiana, ele comenta que, em alguns momentos, a voz de Joyce lembra a de Gal. “Quando ela vai para o agudo... A Gal tinha aquela coisa do agudo que era sensacional. O legal é que a Joyce tem a coisa do agudo também. Quando subiu para o agudo, realmente ficou bem parecido. Ela me falou: 'Cara, tem uma frase que você fez na melodia que é muito Gal. Estou sentindo a Gal cantando’”, conta.
“Na hora em que gravou esse pedaço, Joyce incorporou a Gal. Ficou uma coisa fortíssima ali no estúdio, muito legal mesmo.”
Todo o projeto foi especial. A criação da capa do single “A chuva sem Gal”, por exemplo, ficou a cargo do artista plástico Omar Salomão, que também assinou a capa de “Nenhuma dor”, disco lançado pela baiana em fevereiro do ano passado.
Agora com a “proteção” de Gal Costa, a parceria de Marcos e Joyce vai se fortalecer mais ainda.“Nós, artistas, temos a vantagem de transformar as nossas emoções por meio da arte. Isso é um privilégio. A gente não sabe o que falar, não sabe o que dizer, mas transforma aquilo”, diz Marcos, referindo-se à tristeza causada pela morte da amiga.
Geração de ouro da MPB
Marcos Valle tem 79 anos; Gal Costa, 77; Joyce Moreno, 74. Os três fazem parte da geração de ouro da MPB, que surgiu num momento especial da cultura brasileira e chamou a atenção do mundo.
“Comecei em 1962, durante o período da bossa nova, que teve início em 1958, no Rio de Janeiro. Em 1967, veio o movimento tropicalista, porém Gal já cantava na Bahia, influenciada por João Gilberto. Vim a conhecê-la mesmo no Tropicalismo. Naquele momento dos programas da TV Record, transmitidos diretamente do Teatro Paramount, em São Paulo, onde se juntava aquele monte de artistas para fazer shows. Ali a gente começou a se encontrar”, relembra.
Na Record, se reuniam também Nara Leão, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque, entre tantos outros. “Num dos programas, estavam Gal, Maria Bethânia, Caetano e Gil, os futuros Doces Bárbaros. Bethânia veio me falar o quanto amava ‘Preciso aprender a ser só’, que eu tinha feito com meu irmão Paulo Sérgio Valle.”
Esta canção, aliás, se tornou clássico da MPB. “Foi engraçado, porque quando chegou na época de fazer meu songbook, produzido pelo Amil Chediak em 1998, Gal não sabia que Bethânia já havia gravado a canção e me disse: ‘Quero gravar esta música’. Falei para ela: 'Esta já era, pois a Bethânia gravou. Mas tenho outra para você: ‘Terra de ninguém’. E ela gravou maravilhosamente bem”, conta Marcos Valle.
“Sempre fui aberto às novidades, gosto de ouvir o que está rolando. Isso facilitou a minha vida naquele momento de transição entre a bossa nova e o Tropicalismo. A vinda dela, de Caetano, Gil e Bethânia da Bahia foi uma coisa fantástica, maravilhosa, que acrescentou muito à música popular brasileira”, conclui.
"A CHUVA SEM GAL”
. De Marcos Valle e Joyce Moreno
Havia um cristal
Nas asas do vento
Trazendo um alento
Assim, natural
Voando em qualquer pensamento
Pintando de azul o cinzento
Num céu que mudava de forma naquele momento
A chuva sem Gal
Caiu de mansinho
Foi quase um carinho
Molhou meu olhar
Lembrando um Brasil brasileiro
O sol desse canto certeiro
Parece que o tempo não liga
E assim se desliga
Se torna canção
No fundo do meu coração
Choveu…
A chuva sem Gal
Foi quase um carinho
Foi quase um sinal…
Nas asas do vento
Trazendo um alento
Assim, natural
Voando em qualquer pensamento
Pintando de azul o cinzento
Num céu que mudava de forma naquele momento
A chuva sem Gal
Caiu de mansinho
Foi quase um carinho
Molhou meu olhar
Lembrando um Brasil brasileiro
O sol desse canto certeiro
Parece que o tempo não liga
E assim se desliga
Se torna canção
No fundo do meu coração
Choveu…
A chuva sem Gal
Foi quase um carinho
Foi quase um sinal…
. Single lançado pela gravadora Biscoito Fino. Disponível nas plataformas digitais