Dois dos mais prestigiados biógrafos do Brasil, Ruy Castro e Lira Neto resolveram mostrar como se tira o coelho da cartola. Eles lançaram, respectivamente, “A vida por escrito” e “A arte da biografia”, em que revelam os meandros do ofício a que se dedicam. As obras funcionam, ao mesmo tempo, como manuais de escrita de biografias e espaços de reflexão sobre essa vertente literária.
Tanto um quanto outro autor partem de suas experiências inaugurais para, a partir daí, falar de técnicas empregadas, contextualização histórica e gêneros afins. Neto e Castro contam que começaram a se dedicar às biografias movidos pelo interesse que sempre tiveram por esse tipo de publicação.
“A vida por escrito” completa um ciclo iniciado em 1975. Na época, Ruy Castro e o também jornalista João Máximo, então trabalhando na revista “Manchete”, trocavam ideias diariamente sobre biografias nacionais e estrangeiras que liam. Naquele momento, não imaginavam seguir por esse caminho, mas 15 anos depois, em 1990, debutaram como biógrafos.
“Em 1990, na primeira semana de novembro, eu e João Máximo estávamos com dois títulos, lançados, por coincidência, quase no mesmo dia. Eram o meu ‘Chega de saudade: a história e as histórias da bossa nova’, pela Cia. das Letras, e ‘Noel Rosa: uma biografia’, de João Máximo, em parceria com Carlos Didier, pela Editora da Universidade de Brasília”, escreve Castro.
Ele pondera que “Chega de saudade” não era propriamente uma biografia, mas o que chama de uma reconstituição histórica. A partir dessa estreia, vieram inúmeros outros títulos, nas duas modalidades, como “O anjo pornográfico” (1992), focado em Nelson Rodrigues, e “Ela é carioca: uma enciclopédia de Ipanema” (1999). Na esteira dessas publicações, mais recentemente, ele ofereceu cursos sobre a escrita de biografias.
Castro disse ao Estado de Minas que a motivação para ministrar os cursos e para a publicação de “A vida por escrito” foi a constatação de que o Brasil tem muitas pessoas cujas biografias ele gostaria de ler. “Como eu próprio não posso escrevê-las todas, o jeito é ensinar para que outros as façam e eu possa lê-las”, diz.
Ele considera que a biografia é um gênero ainda em desenvolvimento no país, e a distingue, por exemplo, do perfil, do livro-reportagem ou do ensaio biográfico, que, conforme aponta, são menos densos. “Não temos cursos de biografia nas nossas faculdades, como têm os ingleses e os americanos. E qual curso de jornalismo no Brasil ensina a fazer uma entrevista? Nossos biógrafos, inclusive eu, têm de aprender na prática. E estamos aprendendo”, afirma.
Fontes
Castro explica que, a partir do momento em que escolhe uma pessoa para ser biografada, um cenário ou uma época para fazer uma reconstituição histórica, a primeira coisa que faz é consultar em suas estantes o que já tem a respeito de seu objeto de investigação. “Quase sempre descubro que passei a vida acumulando material sobre essa pessoa ou época, como se já estivesse me preparando secretamente para biografá-la”, comenta.O tempo de feitura de uma biografia ou de uma reconstituição histórica – trabalhos que exigem uma apuração vasta e minuciosa – vai variar conforme a dificuldade para se localizar as fontes de informação, segundo Castro. Ele diz que “Chega de saudade” e “O anjo pornográfico”, por exemplo, demandaram dois anos, ao passo que gastou cinco para escrever “Carmen – Uma biográfica” (2005), em que repassa a vida de Carmen Miranda.
“Eu queria encontrar pessoas que tivessem convivido com ela no Rio, antes de ela ir para os Estados Unidos”, diz, com relação a esta última. “Como Carmen saiu daqui em 1939, essas pessoas precisariam ter pelo menos 19 anos naquele ano. Só que a ideia de biografar Carmen me veio em 2000, donde essas pessoas que eu precisaria achar já teriam pelo menos 81 anos. Onde eu iria encontrá-las? Pois levei cinco anos, mas localizei mais de 80 delas”, conta.
Num determinado trecho de “A vida por escrito”, ele trata da reconstituição histórica, ressaltando que, de certa forma, ela é o contrário da biografia: “Se, nesta, o personagem está em primeiro plano, tendo por trás o cenário e sua época, na reconstituição histórica a situação se inverte: o cenário e a época tomam a frente da narrativa, e os personagens é que vão se imiscuindo nela à medida que chega a vez de cada um”.
Fio condutor
Castro pontua, também, que se a biografia tem como fio condutor um personagem que centraliza tudo, na reconstituição histórica a investigação parece não ter limites, visto que abrangerá sociedade, política, economia, ciência, comportamento e tudo o mais que se possa imaginar. A apuração, portanto, deve ser o mais abrangente possível.“O biógrafo não pode abrir mão de nenhuma informação que tenha se proposto a encontrar. Depois de encontrada, decide se vai usá-la ou não. Mas nunca antes”, diz o autor. Ele exemplifica com “Metrópole à beira-mar: o Rio moderno dos anos 20” (2019), que demandou quatro anos de trabalho, precisamente pela vastidão de informações que buscava.
A arte da biografia Lira Neto, por sua vez, estreou em biografias em 1999, com “O poder e a peste: a vida de Rodolfo Teófilo”. Ele chegou ao personagem – um farmacêutico, sanitarista e escritor – a partir de uma série de reportagens publicadas no jornal “O Povo”, de Fortaleza”, onde trabalhava, iniciadas em 1994. Teófilo atuou no combate a uma epidemia de varíola que, em 1878, dizimou um quinto da população da capital cearense – e da qual pouco se sabia.
Muitas biografias depois, ele diz que resolveu escrever “A arte da biografia” motivado pela procura que tiveram os cursos que passou a ministrar sobre o tema, a partir de sua mudança para Portugal, em 2018. “Eram pessoas das mais variadas experiências, idades e formação. Notei que havia uma demanda grande por esse tipo de informação”, diz.
Ele aponta que a biografia impõe ao biógrafo dois grandes e desafiadores momentos – o da pesquisa e o da escrita –, e que eles se inter-relacionam. “Na fase da pesquisa, é preciso saber olhar a documentação para tentar extrair dela elementos que, quando chegar no momento da escrita, você possa usar de forma a fornecer ao leitor uma narrativa colorida, com sabor”, afirma.
Neto chama esse procedimento de “olhar criativo”, não no sentido da ficção ou da invenção, “mas um olhar que busque extrair de documentos aparentemente frios, duros, detalhes que permitam construir cenas e reconstruir episódios da forma mais sinestésica possível, oferecendo ao leitor a possibilidade de se transportar para dentro daquele contexto”.
Em “A arte da biografia”, ele cita Fernando Morais e Ruy Castro como os principais responsáveis pela modernização do gênero biográfico no Brasil, a partir da década de 1980. Essa modernização, conforme aponta, se deu na medida em que as biografias deixaram de ter um caráter laudatório e passaram a trabalhar as contradições dos biografados, aquilo que faz deles seres humanos passíveis de erros e acertos, vícios e virtudes.
História
Neto diz que “Chatô, o rei do Brasil” (1994), de Morais, foi o livro que o conquistou para o gênero. “Procuro seguir essa linha dos registros biográficos, estabelecendo um diálogo da biografia com a historiografia, com uma visão metodológica menos impressionista, mais calcada na documentação. Acho que esse tipo de cuidado fez com que a biografia passasse a ser vista como uma escrita legítima da história.”Ele também diz se alinhar a Ruy Castro na recusa a biografar personagens vivos, e cita uma máxima do autor de “Chega de saudade”: “Biografado bom é biografado morto”. Castro também se opõe a fazer biografias sob encomenda, e nesse ponto Neto diverge. Ele já assinou, por exemplo, a biografia do magnata cearense Edson Queiroz, que morreu nos anos 2000, a pedido de seus herdeiros.
“Isso não descarto, mas sempre digo, num primeiro encontro com quem me faz esse tipo de convite, que não escreverei nunca biografias chapa-branca. Deixo claro que o livro é meu e que não pode haver qualquer ingerência sobre o trabalho. Quando coloco minhas condições, o que acontece, na maioria das vezes, é que sou desconvidado. No caso do Edson Queiroz, a família não esperava que eu lhe atribuísse uma vida cor-de-rosa”, explica.
Ele diz que o primeiro passo que dá a partir do momento que elege alguém para biografar é ler tudo a respeito da pessoa. “Carlo Ginzburg, um historiador italiano, dizia que era movido pelo entusiasmo da ignorância, que o importante é você partir da ignorância absoluta sobre um tema para tentar descobrir o máximo possível sobre o assunto”, diz.
Para escrever a trilogia biográfica de Getúlio Vargas, publicada entre 2012 e 2014 pela Companhia das Letras, ele passou um ano dedicado exclusivamente à leitura da vasta bibliografia existente sobre o ex-presidente.
No caso da cantora Maysa – de quem publicou a biografia “Só numa multidão de amores” (2007) –, Neto diz que o problema foi o oposto: havia muito pouca coisa escrita sobre ela. A saída foi investir na coleta de depoimentos. “O primeiro desafio é esse, tentar se aproximar do tema, do personagem, consumindo a bibliografia disponível. A partir desse voo de pássaro sobre um território, você vai em busca de fontes primárias.”
“A VIDA POR ESCRITO –
CIÊNCIA E ARTE DA BIOGRAFIA”
• Ruy Castro
• Companhia das Letras (184 págs.)
• R$ 64,90
“A ARTE DA BIOGRAFIA”
• Lira Neto
• Companhia das Letras (188 págs.)
• R$ 64,90