O ator Daniel Giménez Cacho de perfil, em cena de 'Bardo'

Daniel Giménez Cacho interpreta Silvero Gama, que parece ser um alter ego do diretor mexicano vencedor de dois Oscars

Netflix/Divulgação
Silverio Gama é um repórter e documentarista mexicano que vive com a família nos Estados Unidos. Seu trabalho é premiado, ele recebe prêmios e homenagens nos dois países. Aparentemente, o que mais brilha é o seu trabalho sobre pessoas que vão à fronteira na tentativa de entrar nos EUA.

Porém, o que significa sucesso? Silverio não é um idiota e sabe bem que ele não quer dizer grande coisa. Ele chega cheio de contradições que ora ele mesmo constata, ora lhe chegam pelas contestações - bem-fundadas - de seu filho Lorenzo.

Isso pode resumir, em poucas linhas, o argumento de "Bardo", mas está longe de conter todos os sentidos que Alejandro G. Iñárritu explora. É preciso, antes de entrar em sua teia, relembrar que Iñarritu é um desses cineastas mexicanos por quem Hollywood se apaixonou a ponto de já ter ganho nada menos que dois Oscars de melhor direção.



Isto é, as contradições que agora vemos na tela são bem análogas à do homem que ganha a vida nos EUA, o país que roubou ao México uma parte mais que considerável do país, que ergueu um muro para evitar a passagem de imigrantes pela fronteira mexicana. Em poucas palavras, o país que humilha o México quase cotidianamente.

Isso torna mais clara a ironia - Amazon vai comprar a Bajo California -, o sarcasmo - melhor que compre tudo, diz alguém -, a autopiedade de Silverio - "Não posso entender meu país, só amá-lo" - , ou mesmo as palavras do gângster preso, para quem ultrapassamos o estágio da miséria. Agora estamos na pós-miséria, quer dizer, da miséria que se arma até os dentes e mata quem for preciso para melhor traficar entorpecentes.

Fica mais clara ainda a ironia que consiste em ter um documentário que comenta a desigualdade social do país aplaudido por uma plateia chique. Silverio - um alterego de Iñarritu, adivinha-se - se dá conta disso, mas são Lorenzo e o amigo Luís que lhe jogam na cara as contradições de que é feito.

Na verdade, tudo isso se passa em um registro que assimila muito da tradição surrealista mexicana, que evoca Octavio Paz, mistura o sonho, as alucinações, o delírio, a memória e até a vigília. Disso, faz um todo desencantado, que tem como leitmotiv a meteórica existência de Mateo, seu filho que morreu após apenas 30 horas de vida. É Mateo que suscita o comentário de Camila, a filha que mora em Boston: para ela todos vivem no limbo, não só Mateo.

"Bardo" oscila entre a piscina de um clube para ricos e o deserto que acolhe e destrói os pobres. Oscila, de certa forma, Iñarritu. Seu México parece muito, muito distante do Brasil de Glauber Rocha, cujas contradições apontam, ainda que por paus e por pedras, para o futuro, a transformação, a nova civilização.

O México de Iñárritu é trepidante, porém estéril, como se pode deduzir do diálogo que entretém com Hernán Cortés, o espanhol, conquistador do México, destruidor da cultura azteca, entre um espectro e outro.

Câmera

Trata-se de um mundo que escapa entre os dedos de Silverio, por mais que sua câmera busque captá-lo. Seus documentários servem para lhe dar alguma fama, mas ele sabe o quanto isso é desimportante. Ou, se não sabia, seu pai ressurge dos mortos para lembrá-lo, entre outras, disso.

Bem mais do que os brilharecos para inglês ver (americano, na verdade) de outros filmes, as escolhas de Iñarritu aqui são mais orgânicas. Não é raro o surrealismo ser usado como facilidade que libera para qualquer trapaça com tempo e espaço, o que não é o caso em "Bardo".

Da mesma forma, o uso persistente da grande-angular ajuda a nos lançar no mundo distorcido que o cineasta pretende representar em "Bardo". Com a liberdade que lhe dá a autoria - direção, roteiro, produção, montagem - e a força que a Netflix oferece aos cineastas-estrela que contrata, Iñarritu faz um filme bem mais significativo do que os que lhe deram, já, dois Oscar de direção.

Pode-se dizer que em alguns momentos o filme morre, perde interesse. São as dores do autorismo. No mais, passados esses momentos, "Bardo" renasce com força. 
 
“BARDO, FALSA CRÔNICA DE ALGUMAS VERDADES”
• (México, 2022) Direção: Alejandro G. Iñárritu. Com Daniel Giménez Cacho, Griselda Siciliani e Íker Sánchez Solano. Classificação: 18 anos. Disponível na Netflix.