A recriação do Ministério da Cultura foi recebida com júbilo pela classe artística. A escolha de Margareth Menezes para comandar a pasta, de modo geral, também foi bem recebida. Mas o que artistas e agentes das diferentes áreas da produção cultural esperam deste novo momento?
 
A reportagem ouviu representantes da música, cinema, teatro, literatura, artes visuais sobre os anseios que pairam em relação ao setor da cultura. O ajuste ou aperfeiçoamento das leis de incentivo – a Lei Rouanet, em especial – e a representatividade de todos os estados no âmbito do redivivo ministério são preocupações comuns a todos.




 

O diretor Helvécio Ratton afirma que a Cota de Tela é fundamental para a indústria cinematográfica brasileira

(foto: Bianca Aun/divulgação)
 

HELVÉCIO RATTON:

COTA DE TELA JÁ 

A reestruturação do Ministério da Cultura, por si só, é motivo de alegria para o cineasta Helvécio Ratton, especialmente após quatro anos de “desmonte absurdo”. Ele diz que sua expectativa é grande em relação a todas as áreas da cultura, e para a sua, especificamente, aponta como necessidade básica a retomada da Cota de Tela, fundamental para garantir o espaço do cinema brasileiro no mercado.

“A gente vem sofrendo uma política de terra arrasada, de não lançamento de editais, de demora nos pagamentos. A Cota de Tela existe desde o governo Getúlio Vargas, sempre reeditada a cada ano, e isso parou sob a gestão de Bolsonaro. Filmes como ‘Avatar’ chegam a ocupar 80% das salas de cinema do país. A chegada de três blockbusters simultaneamente representa uma ocupação quase plena”, diz.

Ele observa que a volta da Cota de Tela deve vir junto da regulamentação das plataformas de vídeo on demand e de streaming. “A Cota de Tela tem de valer para todas as modalidades de exibição. Não se trata de restringir a entrada de filmes estrangeiros, é bom ter diversidade, mas você tem que assegurar no seu país a presença do cinema que nele se produz”, ressalta.





Para Ratton, a escolha de Margareth Menezes para a pasta foi acertada, mas ele aponta a falta de um representante de Minas Gerais na equipe que está sendo montada.

“Sinto falta de um mineiro, principalmente na presidência do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), porque o maior patrimônio histórico do país está concentrado em Minas. Leonardo Castriota seria um bom nome”, sugere.
Para Ratton, o desafio que se impõe é remontar a pasta abandonada ao ponto de se chegar à degradação de vários órgãos a ela ligados, como a Biblioteca Nacional e a Cinemateca Brasileira.

“O que a gente espera, na verdade, é um Ministério da Cultura forte, atuante, porque a cultura brasileira tem um potencial enorme. Estamos falando não só de produção artística, mas da questão financeira, de emprego e de renda”, salienta.
 

Chico Pelúcio diz que todo o Brasil deve ter 'lugar de fala' no MinC, comandado essencialmente por baianos

(foto: Reprodução/Youtube)
 

CHICO PELÚCIO:

REVISÃO DA LEI ROUANET

Ator, produtor, gestor e integrante do Grupo Galpão, Chico Pelúcio diz que suas expectativas são as melhores possíveis e que a escolha de Margareth Menezes tem simbolismo muito grande por se tratar de uma mulher, negra e artista. O mineiro espera que ela tenha um olhar para a diversidade do Brasil, como teve Gilberto Gil, que considera o melhor ministro da Cultura do país até agora.





“O desejo é de que ela mostre a que veio, mostre sua competência e capacidade de articulação, porque a reestruturação do Ministério da Cultura vai depender muito disso. Confesso que tenho certo receio, em função das últimas nomeações, de que a equipe fique muito baiana, de que o Brasil, como um todo, não tenha lugar de fala – para usar uma expressão corrente – no Ministério da Cultura”, aponta.


Falando especificamente de sua área, Pelúcio considera a revogação ou a revisão de todas as Instruções Normativas da Lei Rouanet uma demanda urgente. “É algo necessário para que a gente possa lidar com a Rouanet de forma mais tranquila, porque está inviável”, diz.


Outras questões importantes são a conclusão da criação do Sistema Nacional de Cultura e a reorganização dos Pontos de Cultura. “Quando falo do Sistema Nacional de Cultura, estou chamando a atenção justamente para a necessidade de se consolidar esse olhar e essa participação plural de todo o Brasil”, diz.





 

O artista multimídia e poeta Ricardo Aleixo defende 'radicalização' em relação às políticas culturais adotadas nos governos Lula e Dilma Rousseff

(foto: Ramon Lisboa/EM/D.A Press)
 

RICARDO ALEIXO:

MAIS OUSADIA NO MINC

Mesmo diante do cenário desolador em que a cultura foi deixada pelo último governo, o poeta, músico, artista multimídia, performer e produtor cultural Ricardo Aleixo diz desejar que Margareth Menezes e sua equipe consigam ir além.

“Espero, de início, que não se pense que se trata apenas da reativação de velhos modos de pensar e fazer. Eu espero ousadia. É preciso radicalizar em relação a programas e políticas já realizados nos governos Lula e Dilma, a partir do entendimento das lacunas daquelas propostas. O desafio não é ser feliz de novo, é fazer o que nunca foi feito”, destaca.

Na seara da literatura, por exemplo, Aleixo espera uma discussão que pense a inter-relação de códigos e de linguagens artísticas.

“É preciso pensar não só no livro como suporte por excelência da literatura, mas também na performance, nas instalações intermídia, no podcast literário, em todas as possibilidades de disseminação. É preciso abandonar a ideia de literatura apenas como código verbal escrito”, aponta.





Aleixo considera que a pasta terá como principal obstáculo reverter a “herança maldita” do bolsonarismo, responsável por instaurar a demonização da cultura e do pensamento.
 
“O ataque às artes se fez acompanhar do ataque à educação, à ciência. É preciso enfrentar esse quadro e buscar a interação entre os campos do conhecimento”, diz.

Aleixo saúda a indicação de Margareth Menezes como ministra, na medida em que a escolha se coloca como um marco de mudança.
 
“O Ministério e as secretarias de Cultura dos estados e dos municípios têm o lastro histórico da presença dos homens brancos. Era preciso nomes que respondessem a um imaginário médio brasileiro. Me solidarizei com Margareth, dou meu voto de confiança a ela, porque rompe com essa tradição”, destaca.
 

Músico Makely Ka quer a retomada do Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura

(foto: Marco Antônio Gonçalves/divulgação)
 

MAKELY KA:

1% DO ORÇAMENTO DA UNIÃO

Para o cantor e compositor Makely Ka, a simples recriação do Ministério da Cultura já atende à grande expectativa da classe artística. “Os quatro anos do governo Bolsonaro foram os piores das últimas décadas para o setor cultural. Houve perseguição mesmo, os artistas foram considerados inimigos públicos, uma espécie de macarthismo que não teve nada de velado, foi explícito”, acusa.





Ele diz que suas expectativas em relação ao Ministério da Cultura giram em torno de vários pontos, sendo a questão orçamentária fundamental. O Plano Nacional de Cultura, que virou lei em 2010, resultado das Conferências Nacionais de Cultura, de construção coletiva de políticas públicas, já trazia a proposta de se destinar 2% do orçamento para o setor cultural, segundo Makely. Ele considera que chegar a 1% já será uma conquista.


O músico também entende a reformulação da Lei Rouanet como ação premente e fundamental. Ele cita como alternativa o Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura (Procultura), "fruto de discussões muito bem fundamentadas", que remonta a 2010.


“Ele foi engavetado porque não atendia aos interesses das grandes empresas. É preciso que seja retomado em substituição à Lei Rouanet, que nunca atendeu plenamente aos artistas por falta de critérios democráticos na distribuição dos recursos”, destaca.





O músico diz esperar da nova gestão do Ministério da Cultura a retomada da Secretaria de Direito Autoral, a reorganização dos Pontos de Cultura e a implementação do ensino de música nas escolas.

 

“Dentro dessas reivindicações todas, uma coisa fundamental é a criação da Agência Nacional de Música, que seria responsável pela regulação, nos moldes da Ancine, porque música também é indústria cultural”, aponta.


Ele gostou da escolha de Margareth Menezes como ministra, mas acredita que ela enfrentará grandes desafios. “É guerreira, batalhadora, mas a gente sabe que a gestão pública é máquina de moer gente. A luta pelo orçamento, por exemplo, vai ser muito grande. O rombo que o governo Bolsonaro deixou tem de ser coberto, e isso não vai ser tarefa fácil”, diz.

 

“Por outro lado, acho que Margareth chega com moral. Tem que aproveitar”, completa.

 
 

Multiartista Sara Não Tem Nome defende investimentos que estreitem o vínculo entre a educação e as artes visuais

(foto: Julia Baumfeld/divulgação)
 

SARA NÃO TEM NOME:

ECONOMIA CRIATIVA EM PAUTA

Artista que transita por várias formas de expressão, Sara Não Tem Nome afirma que suas expectativas são altas, o que, de acordo com ela, é natural após os últimos anos de desmonte do setor cultural. “A volta do ministério é uma luz no fim do túnel para quem produz e para quem consome arte”, aponta.





Sara diz estar se inteirando das propostas que, já neste primeiro momento de gestão, vêm sendo levantadas. “Percebo um olhar para o patrimônio cultural do país em geral que busca trabalhar a diversidade, contemplando várias áreas, a economia criativa inclusive. É preciso bater na tecla de que cultura é uma indústria, gera renda, movimenta o país”, observa.


Para o campo das artes visuais – área em que milita –, ela aponta demandas específicas. Uma das principais é o investimento na educação e na formação tanto do artista quanto do público consumidor.


“A arte ainda é posta num nicho fechado, como uma coisa de elite. É necessário haver democratização, o que passa por se criar uma relação a partir do ensino fundamental para que as pessoas possam se ver dentro desse universo”, diz.


Ao mesmo tempo em que afirma que suas expectativas são altas em relação ao Ministério da Cultura, ela considera que lidar com esse sentimento vindo da classe artística será um ponto sensível para Margareth Menezes e sua equipe.


“Expectativas altas tendem a gerar frustrações. Há uma tentativa de reestruturação e o desafio é conseguir fazer além do mínimo, o que já é complicado diante da situação atual”, pondera.

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