A atriz Vicky Krieps, com vestido de época, fuma em cena de Corsage

No papel da rainha Sissi, a atriz Vicky Krieps foi premiada por sua interpretação no Festival de Cannes

Imovision/Divulgação
 

"Logo no começo senti que não havia uma única verdade. Então pensei que, para mim, o que era verdade era a personalidade imprevisível e complexa daquela mulher. Procurei manter a verdade sobre o que senti e não sobre os fatos históricos"


A diretora austríaca Marie Kreutzer, de 45 anos, só veio conhecer a produção de sua conterrânea Romy Schneider (1938-1982) na juventude, quando começou a estudar cinema. E se interessou pela produção francesa, realizada a partir dos anos 1970, época em que a atriz viveu na França. 

O mito da juventude criado pela trilogia Sissi – os filmes clássicos realizados entre 1955 e 1957 que romantizaram a vida da imperatriz Elizabeth da Áustria (1837-1898) e deram fama a uma Romy adolescente – nunca foram de seu interesse.

Até que, um dia, a atriz luxemburguesa Vicky Krieps, que Marie já havia dirigido, lhe sugeriu um novo filme sobre Sissi. A cineasta não levou a sério, a imperatriz interessa mais aos estrangeiros do que aos austríacos, ela acredita. Mas o projeto acabou vindo a cabo. E com um reconhecimento muito maior do que Marie esperava.

Um dos 15 pré-selecionados para disputar as cinco vagas para o Oscar de melhor filme internacional, “Corsage” estreia nesta quinta-feira (12/1) em Belo Horizonte, nos cines UNA Belas Artes e Ponteio. Também roteirista deste que é seu quinto longa, Marie fez uma abordagem moderna e bastante pessoal para capturar o lado rebelde do maior símbolo histórico de seu país.

"Acho que ela nunca foi feliz como imperatriz e que, quando atingiu os 40, pôde expressar melhor isto, em vários níveis. O que me convenceu (a fazer um filme sobre Sissi) então foi sua rebeldia, pois achei que as mulheres de hoje poderiam se relacionar com esta história. Porque ainda hoje temos que agradar ou apenas ser amadas"

Marie Kreutzer, cineasta



PRISÕES 
“Corsage” (corpete, em português) acompanha a imperatriz na entrada de seus 40 anos. A vestimenta que servia para deixar as mulheres com cintura de vespa (e comumente passavam mal com falta de ar) é uma luta diária para Elizabeth (Vicky Krieps, que domina o filme, presente na tela o tempo todo).

A peça de roupa é apenas uma das prisões em que a imperatriz se encontra. Ela vive em um absoluto delírio de solidão. Tem que conviver com o marido infiel, o imperador Francisco José (Florian Teichtmeister), e uma corte que lhe é avessa. Vai deixando, aos poucos, as tarefas que a posição lhe exige para encontrar alguma liberdade nas viagens constantes, nos passeios a cavalo, no cigarro, nos esportes.

Nesta recriação do mito, Marie se permitiu várias liberdades. A música pop embala o filme, com destaque para a canção “She was”, da francesa Camille. Há anacronismos intencionais, como um trator a motor ou um balde de plástico, coisas impensáveis no período da narrativa, (1877-1878).

“Procurei manter a verdade sobre o que senti ao pesquisar sobre Sissi, e não sobre os fatos históricos”, afirmou Marie em entrevista concedida ao Estado de Minas, de Los Angeles, onde faz campanha para o Oscar. Leia a seguir. 

De que maneira Vicky Krieps influenciou o projeto? Foi mesmo ideia dela a de um filme sobre Sissi?
Sim. Trabalhamos juntas em outro filme (“We used to be cool”, de 2016) e desde aquela época queríamos fazer algo de novo. Um dia ela me disse que eu deveria fazer um filme sobre Sissi. Não achei que era sério, pois, crescendo na Áustria, você vê a imagem dela em todo lugar, todo souvenir. Sissi é para os turistas. Mas mantive a ideia comigo, comecei a ler sobre ela e, em algum ponto, achei que tinha material suficiente para fazer alguma coisa diferente.

Mas o que te convenceu?
Se eu iria fazer um filme com a Vicky (que tem 39 anos), não poderia ser, obviamente, sobre os 20 ou os 60 anos de Sissi. E eu sabia muito pouco sobre ela por volta dos 40. Foi muito interessante ler sobre a Sissi, vi que era uma personagem complexa, especialmente para a época. O que ficou dela para mim foram sinais de rebeldia contra as regras, a posição que ocupava e o que se esperava dela. Acho que ela nunca foi feliz como imperatriz e que, quando atingiu os 40, pôde expressar melhor isto, em vários níveis. Ela viajava o tempo todo, se exercitava muito, o que não era típico para as mulheres. Acho que os esportes eram uma maneira de ela sair fora (da vida como imperatriz), ter algo só dela. O que me convenceu então foi sua rebeldia, pois achei que as mulheres de hoje poderiam se relacionar com esta história. Porque ainda hoje temos que agradar ou apenas ser amadas.

Vicky está em praticamente todas as cenas de “Corsage”. É verdade que você a manteve separada do resto do elenco?
Quando começamos a preparação do filme, senti que era melhor sentarmos, conversarmos, tomarmos café. E a maior parte dos atores estava muito impressionada com ela. Tentei usar isto a favor do filme. Deixei-a longe dos outros, o que foi melhor, pois ela precisava de muito tempo para maquiagem e figurino. Quando estava pronta, toda vez que entrava no set, a gente filmava. Não havia ensaios. Filmei sempre com o foco nela. E todos os outros (atores) reagiram a ela.

Quando se fala de cinebiografias, o público, em geral, sempre espera encontrar “a verdade”. Em sua recriação, qual foi a verdade que buscou?
Nos livros, há muitas interpretações diferentes sobre Sissi. Por outro lado, não há muitos fatos sobre ela. O que temos são cartas, diários, jornais. O melhor livro sobre ela, com fatos de sua vida, é fininho – as biografias são bem grossas. Ou seja, houve muita interpretação dos fatos. Logo no começo senti que não havia uma única verdade. Então pensei que, para mim, o que era verdade era a personalidade imprevisível e complexa daquela mulher. Procurei manter a verdade sobre o que senti e não sobre os fatos históricos. 

Quais foram suas inspirações quando estava fazendo o filme?
De uma maneira geral, não me inspiro em outros filmes, mas em músicas, pinturas, fotografias. Mas “A favorita” (2018) me inspirou. Adoro o diretor (Yorgos Lanthimos) e assisti ao filme quando estava terminando o roteiro de “Corsage”. Fiquei maravilhada. Eu não queria fazer o clássico filme histórico, e isto nem é possível com o orçamento dos filmes europeus. Ver “A favorita” me ajudou a entender que eu não precisava fazer o filme de época perfeito.

O título, “Corsage”, remete à falta de liberdade da mulher. A peça de roupa é como uma gaiola. O que você pensa sobre esta questão, falando sobre uma perspectiva atual?
Como mulheres, ainda temos algumas gaiolas, coisas de expectativa, do que o mundo e a sociedade esperam de nós. E há também as gaiolas mais físicas. Para mim, por exemplo, quando uso salto alto por mais de meia hora. Nos falam que os saltos nos deixam mais bonitas, mas, para mim, eles só machucam, não consigo caminhar direito. Há também algumas coisas de underwear. Nos fazem acreditar que precisamos de muitas coisas para nos sentir mais bonitas. Ou seja, as coisas mudaram um pouco (desde a época de Sissi), mas a ideia permanece ainda hoje.

Você está em Los Angeles, em plena campanha para o Oscar. Quais são as suas expectativas?
Estou aprendendo muito, não sabia que tantas coisas eram necessárias, não sabia como era uma campanha. Está sendo divertido, mas também trabalhoso. Meu plano para este filme era exibi-lo em Cannes (de onde Vicky Krieps saiu com o prêmio de melhor intérprete na mostra “Um certo olhar”) e só. Não pensei em nada depois. Então, tudo o que vem acontecendo é um presente. Estou tentando aproveitar, mas estou muito cansada. Todo mundo me pergunta o que vou fazer depois e não tenho resposta, porque não tenho tempo, estou trabalhando constantemente no filme. Estou feliz por toda a atenção que “Corsage” está recebendo, mas não tenho muitas expectativas (quanto ao Oscar). Prêmios são superestimados. E a verdadeira competição acontece muito antes, quando você consegue financiamento e todos os meios para fazer um longa. Agora o que podemos fazer é celebrar, mas eu realmente não gosto de competir.