Um saco plástico que envolve a cabeça e priva nariz e boca de ar. Um cigarro que passeia pelo corpo nu e o marca com queimaduras. Uma boca que, num beijo, arranca sangue dos lábios colados aos seus. É o tesão levado ao extremo que guia "Regra 34", mas não só.
Essas cenas de fetiche se alternam com outras comportadas, em tribunais e escritórios, enquanto mulheres que foram vítimas de diferentes tipos de violência relatam suas experiências à mesma personagem que, em casa, deixa seu corpo ser chupado, penetrado, cortado e queimado das formas mais diversas.
Em "Regra 34", Simone é uma defensora pública que cuida de casos de violência doméstica. Os estudos em direito penal foram pagos com o dinheiro de performances sensuais na internet, como camgirl. Ela mantém a atividade para gerar renda extra, mas, depois de ver um filme pornográfico de BDSM – sexo baseado no prazer vindo da dor –, ela começa a explorar fetiches, sem a segurança e o conhecimento necessários.
Laureado com o Leopardo de Ouro, prêmio máximo do Festival de Locarno, só vencido antes por um brasileiro em 1967, ano de "Terra em transe", o longa de Júlia Murat esteve ainda no Festival do Rio, onde as sessões foram disputadas.
Fantasma
Há seis anos, a cineasta de "Pendular" refletia sobre o que gostaria de abordar em seu próximo filme, quando foi confrontada por um fantasma que sempre rondou sua vida – a incompreensão em torno do casamento entre sexo e violência.
Ela é filha da também cineasta Lúcia Murat, que tem sua obra marcada pela experiência da prisão e da tortura durante a ditadura militar, quando integrou a luta armada contra o regime. Por isso, a diretora nunca entendeu muito bem como havia gente que sentia prazer na dor.
"Quando eu começo a querer falar sobre o tema, eu entendo o quão complicado ele é, ainda mais num país como o em que a gente vive, com uma história marcada por aparatos de repressão", diz a cineasta.
"Entender essa complexidade fez com que eu adicionasse várias camadas. É aí que entra a ideia da defensoria, por exemplo, para explicitar as relações de poder e controle do corpo com as quais nos debatemos sempre."
O título "Regra 34" faz alusão a uma máxima da internet que afirma que para tudo há uma versão pornô. Qualquer tema, objeto ou personagem pode ganhar uma versão erotizada no mundo virtual – e no longa de Murat, qualquer saco, cigarro, vidro e item à disposição vira apetrecho sexual.
Por ter personagens manuseando esses objetos, a diretora passou por um processo complicado de escolha de elenco. Afinal, era preciso encontrar atores que estivessem dispostos a não apenas tirar a roupa diante das câmeras, mas simular situações de prazer vistas com preconceito pela porção mais moralista da sociedade.
Riscos
Ainda mais importante, no entanto, era que essas pessoas tivessem consciência dos riscos, que não topassem o trabalho apenas pelo tesão. O elenco foi construindo os próprios limites no set de filmagem, afirma ela, que também participou dos seis meses de preparação para que, na hora certa, todos se sentissem confortáveis.
Antes das gravações, eles tiveram aulas de direito penal, kung fu, tantra, asfixia e BDSM. Uma camgirl fez uma performance virtual diante deles, para explicar o que excitava e o que não. E a ideia de consentimento pairou a todo instante.
Assim, o roteiro foi sendo construído gradualmente, incorporando vivências e desejos de todos os envolvidos e as descobertas da própria Murat sobre o universo pornográfico. Um aspecto moldado com especial cuidado foi a identidade da protagonista, uma mulher negra, para que "Regra 34" não soasse como pura fetichização desses corpos.
"Nós estabelecemos desde cedo três imagens que não queríamos reproduzir no filme. Não queríamos aquelas românticas – da câmera lenta passando pelo corpo –, as exóticas – do mistério da contraluz, de revelar sem revelar – e as pornográficas – da exposição pela exposição. Queríamos um documental do prazer, algo que não tivesse como intuito dar tesão ao espectador, só aos personagens."
É diferente de "Até os ossos" ou "Titane", exemplares de uma leva recente de filmes que tem explorado os limites do sexo, associando a transa ao sangue, às vísceras e ao que mais parecer extremo sem economizar no erotismo.
“REGRA 34”
(Brasil, França, 2022) Direção: Júlia Murat. Com Sol Miranda, Lucas Andrade e Lorena Comparato. Classificação: 16 anos. Em cartaz no UNA Cine Belas Artes (Sala 1, 16h40 e 18h30)