"'Argentina, 1985' é uma lição, ainda que enquanto cinema não tenha novidade nenhuma, pois é um filme linear, realista. Mas ele toca num problema que o Brasil não tem como resolver ainda, que é a memória como justiça"
Maria Luiza Rodrigues Souza, autora de "Arquivos da derrota: O cinema pós-ditatorial no Brasil e na Argentina"
Certeza não há, mas a probabilidade de “Argentina, 1985” estar entre os indicados a Melhor Filme Internacional no Oscar 2023, no anúncio que será feito na próxima terça-feira (24/1), é grande. Uma vitoriosa trajetória em prêmios, iniciada em setembro passado no Festival de Veneza, com o Fipresci (da crítica internacional), e reforçada pelo recente Globo de Ouro, creditam o filme de Santiago Mitre.
O longa-metragem lançado pelo Prime Video suscitou discussões sobre o acerto de contas pela violência e o horror perpetrados por uma ditadura. Na segunda metade do século 20, Brasil, Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai, para falar somente de países do Cone Sul, sofreram golpes de Estado impetrados por militares. O cinema vem, até hoje, passando a limpo a história, seja por meio da fabulação ou da recriação de fatos.
Dito isto, a pergunta feita diante da repercussão de “Argentina, 1985” é como o Brasil, com uma produção de filmes políticos muito relevantes desde o Cinema Novo, ainda não fez um filme semelhante ao de Mitre. A resposta mais óbvia é que o que ocorreu no pós-ditadura foi radicalmente diferente nos dois países.
“Os filmes políticos brasileiros tratam sempre de sobrevivência, resistência, nunca dão conta de uma proposta de futuro, pois não houve fechamento aqui. Sentimos, inclusive, uma aceitação do que ocorreu no período (da ditadura). Os fantasmas continuam assombrando”, comenta o crítico e professor de cinema José Ricardo da Costa Miranda.
Mas há também questões particulares, que dizem mais respeito ao cinema do que à própria história. Miranda comenta que a produção argentina mostra uma possibilidade de ir adiante. “Seria uma dor que eles carregariam para sempre, algo que os constitui, mas eles conseguem circunscrever a questão.” Para ele, a produção argentina política voltada para o cinema tem o foco “na ideia do íntimo para fazer uma espécie de análise da época.”
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Vitórias
Os exemplos mais claros são os dois Oscars de Melhor Filme Estrangeiro que o país vizinho ostenta: “A história oficial” (1985), de Luiz Puenzo, sobre uma professora que descobre que a filha que adotou pode ser de presos políticos, e “O segredo dos seus olhos” (2009), de Juan José Campanella, que acompanha um ex-policial que retorna a Buenos Aires disposto a passar a limpo seu passado, escrevendo um livro sobre seu envolvimento no assassinato de uma jovem às vésperas do golpe militar.
“O primeiro tem uma pegada de drama; o segundo, de policial. São filmes que abordam o período a partir do gênero. E, geralmente, é o gênero a chave para o espectador médio, que se liga nos códigos que conhece (suspense, policial, drama) para se vincular com a história. O cinema argentino tem feito isso de forma excepcional.”
“Argentina, 1985” também vai pelo mesmo caminho, ao acompanhar o chamado Julgamento das Juntas Militares, que processou os militares-líderes da ditadura. O público conhece a história política por meio da trajetória dos dois promotores encarregados do caso, Julio Strassera (Ricardo Darín) e Luiz Moreno Ocampo (Peter Lanzani), ambos personagens reais.
“O cinema argentino domina melhor os códigos da narrativa clássica (do que o brasileiro)”, comenta o crítico e programador de cinema Marcus Mello. “’Argentina, 1985’ tem tudo no lugar. A narrativa flui de uma maneira fácil de ser seguida, ‘abraça’ o espectador, que embarca nela. A Argentina sempre teve uma preocupação com a solidez dramatúrgica, coisa que não se vê em muitos roteiros no Brasil.”
Sem comparação
Mello cita um longa brasileiro também baseado em fatos ocorridos durante a ditadura e que alcançou reconhecimento internacional, sendo indicado ao Oscar. “Não dá para comparar, tanto em termos de narrativa quanto de atuação, ‘Argentina, 1985’ com ‘O que é isto, companheiro’ (1997, Bruno Barreto). A estrutura dramatúrgica e o conjunto de atuações é muito melhor resolvido (no caso do filme argentino).”
Para ele, tal fato tem muita relação também com formação. “Nos anos 1990, falava-se que a Argentina era o país que mais tinha estudantes de cinema no mundo. Há um investimento de roteiristas, realizadores e uma tradição dramatúrgica muito grande. Eles vão muito ao teatro, ao cinema, e não têm uma relação com a telenovela como os brasileiros. Alguns filmes nacionais, inclusive sobre a ditadura, têm uma estrutura novelesca. E isto no mau sentido”, comenta Mello.
Ele exemplifica a influência da TV com o longa-metragem “Olga” (2004, de Jayme Monjardim). “Um grande episódio foi transformado em um novelão mexicano. Infelizmente, na nossa cultura, os códigos narrativos da telenovela respingam onde não deveriam para atrair mais espectadores.”
Professora aposentada da Universidade Federal de Goiás (UFG), a antropóloga Maria Luiza Rodrigues Souza é autora de “Arquivos da derrota: O cinema pós-ditatorial no Brasil e na Argentina” (2014), fruto de sua tese de doutorado na Universidade de Brasília (UnB). Na obra, ela analisa filmes brasileiros e argentinos da década de 1980 até os anos 2000.
Entre os longas analisados estão, do lado argentino, o supracitado “A história oficial” e “Kamchatka” (2002), de Marcelo Piñeyro. Da produção nacional estão, por exemplo, “Ação entre amigos” (1998), de Beto Brant, e “Quase dois irmãos” (2005), de Lúcia Murat, cineasta e ex-integrante da luta armada, que, presa e torturada nos Anos de Chumbo, relê o período por meio de seus filmes.
Dedo na ferida
“Quando comecei a pesquisa, vi que a Argentina tinha um material variado nas artes muito contundente sobre a memória do terror. O Brasil sempre faz uma coisa meio enviesada, a história é mais distanciada, como se a gente não conseguisse colocar o dedo na ferida. A Argentina vai direto ao ponto, com filmes muito realistas”, diz Maria Luiza.
Como sua pesquisa não chegou à atualidade, não está ali, por exemplo, “Marighella” (2019), de Wagner Moura, que ela considera um “marco”. “Mas veja quanto tempo o Brasil demorou para falar de seus problemas. A relação com as Forças Armadas é um eterno problema. Parece que não se pode falar sobre isto. ‘Argentina, 1985’ é uma lição, ainda que enquanto cinema não tenha novidade nenhuma, pois é um filme linear, realista. Mas ele toca num problema que o Brasil não tem como resolver ainda, que é a memória como justiça”, afirma.
"É nesta ficção engenhosa de nação, de uma sociedade racista e violenta, que reemerge o bolsonarismo. Apagar o passado é ruim para a democracia, pois ela perde a referência e se cria uma ideia de impunidade"
Heloisa Starling, historiadora
“Nós não enfrentamos o passado”
Há semelhanças, como a Guerra Fria como pano de fundo, os grupos de esquerda apresentados como ameaça à ordem nacional, a tortura, o assassinato e o desaparecimento de presos políticos. No entanto, as ditaduras brasileira (1964-1985) e argentina (1976-1983, esta a última e mais sanguinolenta delas, pois entre 1966 e 1973 os militares também governaram o país após um golpe de Estado) se diferenciam radicalmente em sua prestação de contas.
“A Guerra das Malvinas (1982) fez a diferença. Como os militares foram derrotados, houve uma brecha maior para haver um enfrentamento político”, explica a historiadora e escritora Heloisa Starling, professora da UFMG. “Aqui, a transição não foi feita por uma derrota militar. Ela foi negociada, houve um processo de abertura lento e gradual organizado pelo (general) Geisel.”
De acordo com ela, o histórico julgamento que em 1985 revelou os horrores da ditadura na Argentina aumentou os debates no Brasil. “A sociedade foi para a rua, as pessoas discutiram a democracia. Nada diminui o vigor do movimento pela redemocratização, mas a transição foi negociada.”
Diante da negociação, não houve um acerto propriamente – entre os sul-americanos, o Brasil é o país que menos julgou e puniu crimes de um governo ditatorial. Para Heloisa, a questão é recorrente na história brasileira.
“Nós não enfrentamos o passado, nossa característica sempre foi a de tentar a conciliação e o acordo. Negamos a escravidão, a estrutura que fundou o Estado brasileiro. Em torno disto surgiu uma sociedade hierárquica, violenta, que criou uma epiderme civilizatória de valores, como disse Joaquim Nabuco, um pensador muito importante do século 19.”
As consequências chegam aos dias de hoje. “É nesta ficção engenhosa de nação, de uma sociedade racista e violenta, que reemerge o bolsonarismo. Apagar o passado é ruim para a democracia, pois ela perde a referência e se cria uma ideia de impunidade”, arremata Heloisa.
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