"Depois que a gente lança o livro e os personagens vão para o mundo, ficamos morrendo de saudade"
Marcela Dantés, escritora
Em 2016, quando iniciou a escrita do romance “João Maria Matilde”, Marcela Dantés dividia suas sessões de análise com Matilde, a protagonista do livro. “Ligava para meu psiquiatra e dizia: 'Olha, hoje estou marcando para a Matilde e não para mim, OK?'”, conta a autora, revelando o quanto foi divertido e intenso o processo de construção do romance.
Marcela não se portava como Matilde diante do médico, obviamente, mas levava para o consultório os dilemas da personagem.
“No primeiro dia, disse para ele: 'A Matilde é uma pessoa que tem ansiedade, síndrome do pânico e, possivelmente, uma esquizofrenia que ela vai descobrir ao longo do enredo. Preciso saber como ela é”, conta Marcela.
O psiquiatra ouvia tudo atentamente, explicava os sintomas de cada doença e as possíveis reações de Matilde diante de cada acontecimento que Marcela pensava em inserir na história.
Selo de ficção
Publicado em maio do ano passado pela Autêntica Contemporânea, o livro faz parte dos quatro primeiros lançamentos do selo voltado para a ficção atual. Os outros títulos são “Esperando Bojangles”, do francês Olivier Bourdeaut; “Planícies”, do argentino Federico Falco; e “Mandíbula”, da equatoriana Mónica Ojeda.
Marcela Dantés vai participar do projeto Sempre um Papo, nesta segunda-feira (23/1), comandado pela jornalista Jozane Faleiro. Na conversa, relembrará as sessões psiquiátricas de Matilde, o sufoco para conceber o livro em Portugal e comentará outros títulos que publicou, a coletânea de contos “Sobre pessoas normais” (2016) e o romance “Nem sinal de asas” (2020).
“Em 2016, recebi o convite do (escritor angolano José Eduardo) Agualusa para fazer residência literária em Portugal, no Festival Literário Internacional de Óbidos. Foi tudo tão rápido que cheguei em Portugal ainda sem saber sobre o que escrever”, diz.
Quando Marcela desembarcou em Óbidos, pequena vila medieval cercada por muralhas, e andou a esmo observando o cotidiano e a cultura local, o argumento de “João Maria Matilde” foi se desenhando em sua mente.
Testamento deflagra trama
Matilde é uma tradutora brasileira que cresceu sem o pai e precisa lidar com o avanço do Alzheimer da mãe. A curiosidade sobre a identidade paterna, que há muito deixou de ser obsessão da moça, volta à tona quando ela recebe a ligação de um advogado português dizendo que o pai dela, João Maria, morreu atropelado e o testamento precisa ser lido.
Matilde parte para Portugal. Lá, durante o reencontro tardio com sua origem, vê a saúde mental se deteriorar à medida que detalhes sobre o pai são revelados. O tom da trama se altera conforme as trajetórias de pai e filha vão se chocando.
Embora seja o lançamento mais recente de Marcela, “João Maria Matilde” é o primeiro romance escrito por ela. Em meados de 2018, quando o concluiu, decidiu guardá-lo na gaveta.
“Foi um livro muito difícil para mim, porque trata de saúde mental, assunto que me toca muito pessoalmente. Quando estou escrevendo, fico meses planejando e pensando nos personagens. Neste livro não tive esse tempo, ele apareceu de forma muito intensa.”
“João Maria Matilde” ficou na gaveta por dois anos até ser lapidado, “praticamente reescrito”, conforme a autora. Nesse período, Marcela publicou outro romance, “Nem sinal de asas” (Patuá), tornou-se mãe e experimentou o isolamento absoluto por causa da pandemia.
Tudo isso fez com que a versão original de “João Maria Matilde” fosse modificada. As alterações demandaram quase dois anos.
O resultado final deixa evidente o esmero de Marcela. Além de personagens densos e complexos, o romance conta com um feito notável da autora: o modo de falar dos portugueses é adaptado com maestria.
“Foi uma entrega muito grande”, resume, destacando o desgaste do processo de escrita. “Depois que a gente lança o livro e os personagens vão para o mundo, ficamos morrendo de saudade”, diz.
Imersão na Serra do Espinhaço
Marcela tem o projeto de outro romance para este ano, ambientado em uma vila fictícia na Serra do Espinhaço e na cidade de Gouveia, perto de Diamantina.
Sem entrar em detalhes, adianta que vai tratar de questões mentais, “desta vez, elevadas em uma potência maior”. Há quatro vozes de narradores na trama, que aborda a loucura.
No entanto, Marcela Dantés não vai recorrer a sessões psiquiátricas, como ocorreu em “João Maria Matilde”. Planeja imersão mais profunda, a vivência real do que vai escrever.
Tanto é que pergunta ao repórter, ao final da entrevista: “Por acaso, você conhece alguém em Gouveia que pode me hospedar por uns 30 dias?”.
SEMPRE UM PAPO
Com Marcela Dantés. Mediação: Jozane Faleiro. Nesta segunda-feira (23/1), às 19h, com transmissão pelas redes sociais do Sempre um Papo no Facebook e YouTube. Gratuito
“JOÃO MARIA MATILDE”
.De Marcela Dantés
.Autêntica Contemporânea
.162 páginas
.R$ 41,17
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