Uma sequência no último dos cinco episódios de “Todo dia a mesma noite”, que estreia nesta quarta-feira (25/1), na Netflix, justifica a realização da série sobre a tragédia da boate Kiss, que completa 10 anos nesta semana. 





No Superior Tribunal de Justiça (STJ), Pedro (Thelmo Fernandes), pai de uma vítima do incêndio que matou 242 jovens na cidade gaúcha de Santa Maria, relembra outras mortes que poderiam ter sido evitadas não fossem o descaso, a ganância, a impunidade e a negligência que marcam a história do Brasil.

Cita as tragédias de Brumadinho (janeiro de 2019), do Bateau Mouche (dezembro de 1988) e do Flamengo (fevereiro de 2019). Nesta cena, ambientada em junho de 2019, o personagem está no julgamento de um recurso para que os quatro réus – os dois donos da boate e dois integrantes da banda que soltou os fogos de artifício – fossem a júri popular. 

Naquele momento, passados seis anos e meio da tragédia, nada havia ocorrido com os envolvidos. Hoje, 10 anos depois – o incêndio foi em 27 de janeiro de 2013 –, o caso permanece emperrado: os réus foram julgados em dezembro de 2021 e condenados. Posteriormente, em agosto de 2022, o júri foi anulado e uma nova data para o julgamento deve ser marcada. Todos estão em liberdade. 





Na noite da tragédia, a casa noturna estava com lotação muito maior do que sua capacidade, não tinha alvará nem saída de emergência, seus extintores de incêndio não funcionavam e havia sido isolada com espuma imprópria, que pegou fogo quando a banda usou fogos de artifício. 
 

 

Desdobramentos

Dramatizar um desastre de grandes proporções – o caso Kiss é a terceira maior tragédia em casas noturnas do mundo – é um caminho perigoso. Tem que se tomar cuidado para não cair na mera especulação ou no oportunismo. De forma criteriosa, “Todo dia a mesma noite” não cai em armadilhas.

Conta, por meio de personagens ficcionais inspirados em pessoas reais, o que aconteceu na fatídica noite. Porém, concentra-se muito mais nos desdobramentos – e na falta de memória e de justiça que marcam o Brasil.  

"Não queremos que essa história caia no esquecimento, então essa série é uma denúncia, uma forma de lembrar que essas famílias que buscam justiça há 10 anos seguem sem uma resposta", afirma Júlia Rezende, que assina a direção-geral da produção. 





"Fomos muito cuidadosos na hora de decidir o quê e como mostrar, então o som é essencial, bem como o foco da câmera. Quando estamos com um personagem, tudo ao redor fica desfocado, justamente para tornar aquilo tolerável", acrescenta.

A série foi inspirada no livro-reportagem “Todo dia a mesma noite – A história não contada da boate Kiss” (Intrínseca, 2018), da jornalista mineira Daniela Arbex, que atuou como consultora da produção.

No livro, com uma estrutura de thriller, a jornalista reconstitui a noite de 27 de janeiro por meio das lembranças de quem participou direta (os profissionais da saúde e sobreviventes) ou indiretamente (os parentes dos mortos) do episódio. 




Vítimas

O foco da obra está nas vítimas e nas pessoas que participaram ativamente do salvamento. O processo, as investigações, as reviravoltas do caso são deixados para a parte final, com um destaque menor.   

Mesmo tendo o livro-reportagem como base, a série faz o contrário. No roteiro de Gustavo Lipsztein, a tragédia em si é ambientada nos dois primeiros episódios. No primeiro, acompanhamos a vida de alguns jovens de Santa Maria que se preparam para passar a noite na boate – as sequências do incêndio, do corre-corre, do aprisionamento na boate e das sucessivas mortes foram filmadas com discrição. 

Mais efetivo para reforçar a violência das tragédias é ouvir o som dos celulares que não param de tocar – algo que Daniela Arbex havia apontado em seu livro. Seriam ligações de pais e mães que, ao saber do ocorrido, correram para tentar contato com os filhos – os celulares nunca foram atendidos. 
 
 

Procura

O segundo episódio traz a procura dos pais pelos filhos, vivos ou mortos, nos hospitais de Santa Maria e no ginásio municipal, onde os corpos foram colocados para reconhecimento. Mesmo sem ser explícitas, há várias sequências de forte impacto. A partir deste momento, ficam mais desenhados os personagens que irão protagonizar a história. 





Todos são pais de vítimas de morte. São eles o supracitado Pedro (Thelmo Fernandes) e a mulher Sil (Débora Lamm), um casal simples de Santa Maria; Ana (Bianca Byington), uma fazendeira gaúcha de posses; Ricardo (Paulo Gorgulho), um militar local; e Geraldo (Leonardo Medeiros), que vive em São Paulo. Eles encabeçam a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria.
 

Familiares das vítimas da tragédia da Boate Kiss no julgamento do caso, realizado em dezembro de 2021 em Porto Alegre, e adiado posteriormente

(foto: Silvio Avila/AFP)
 

Como personagens secundários estão os detetives que investigaram o caso, os promotores, duas vítimas que tentam reconstruir sua vida com as sequelas do incêndio e os donos da boate. A série não utiliza nomes reais: na ficção, a banda Gurizada Fandangueira passou a se chamar Guapos Baladeiros. Os donos da boate, Elissandro Callegaro Spohr (Kiko) e Mauro Londero Hoffmann, na série são chamados Anderson Almeida Pargo (Dedé) e Thales Matteus Baumer.

Do terceiro ao quinto episódios, a série se concentra no período que veio a seguir. Depois do luto, veio a indignação, o que levou os pais a se unirem em busca de justiça. São vários os momentos de tribunal. 





A produção acaba lembrando fatos pouco falados fora do Rio Grande do Sul. Houve um momento em que alguns pais chegaram a ser processados pelo Ministério Público.
 
A luta dos pais e sobreviventes para que o caso de Santa Maria não fosse esquecido trouxe situações vexatórias, como um morador local que atacou uma mãe na tenda da associação no meio da praça. Segundo ele, já era momento de esquecer aquilo. 

Tal situação, apresentada na série, veio da própria pesquisa de Daniela Arbex para o livro. "A gente precisa construir esse caso na memória coletiva do Brasil para que o que te indignou ao ver a série não aconteça mais", diz a jornalista (Com Folhapress)

“TODO DIA A MESMA NOITE”

• Minissérie em cinco episódios. Estreia nesta quarta (25/1), na Netflix

O Corpo de Bombeiros foi chamado para conter o incêndio, que se alastrou rapidamente devido a uma série de irregularidades na boate, em Santa Maria

(foto: Germano Roratto/Ag. RBS/Folhapress)

Documentário sobre a tragédia gaúcha

O Globoplay lança nesta quinta (26/1) a minissérie documental “Boate Kiss – A tragédia de Santa Maria”. Com cinco episódios, a produção é comandada pelo repórter Marcelo Canellas. Gaúcho de Passo Fundo e ex-morador de Santa Maria, o jornalista acompanha o caso desde o início. Após a tragédia, entrevistou familiares, sobreviventes e outros envolvidos.
 
Em sua cobertura, Canellas também foi a Buenos Aires, onde um caso semelhante ocorreu em 2004 – 194 pessoas morreram durante o incêndio na boate Republica Cromañón.
 
Só que, na Argentina, diferentemente do Brasil, a história teve uma conclusão: os envolvidos foram julgados e presos, e o prefeito de Buenos Aires na época da tragédia foi destituído do cargo e viu sua carreira na política ser encerrada, depois que ficou comprovada uma série de irregularidades no funcionamento da casa noturna.




 

O então cardeal Jorge Bergoglio, que se tornaria o papa Francisco, celebra missa para familiares dos 194 mortos na discoteca República Cromañón, em Buenos Aires. A cerimônia religiosa ocorreu em 30 de dezembro de 2005

(foto: Juan Mabromata/AFP)
 

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