Fernando Pessoa viveu seus 47 anos numa existência que poderia, sem muito risco de injustiça, ser chamada de tediosa. Passava boa parte do tempo escrevendo sozinho, nunca foi afeito a grandes aventuras e, ao que tudo indica, morreu virgem. Sua vida dificilmente renderia uma boa biografia. Mas a questão é que, dentro dele, havia muito mais gente.





“Há autores tão grandes quanto Pessoa, mas é difícil encontrar um autor tão vasto”, diz Richard Zenith, seu biógrafo, que se valeu dessa vastidão para criar um livro de mais de 1,1 mil páginas que, publicado primeiro em inglês há dois anos, acabou finalista do Prêmio Pulitzer.

Universo

Apesar de ter nascido a um oceano de distância, o americano se tornou um dos maiores especialistas no autor português que estuda há mais de 30 anos. Nas páginas da biografia, mergulha no universo composto de tinta e papel no qual, segundo ele, Pessoa viveu sua sexualidade, sua espiritualidade e sua política.

O pesquisador e tradutor, que pontua diversos “well” em meio ao característico “s” do sotaque lusitano, vasculhou como poucos o acervo de mais de 25 mil papéis que Pessoa deixou anotados em seu apartamento. Também foi responsável por estabelecer a versão respeitada do caudaloso “Livro do desassossego”, publicada aqui pela Companhia das Letras.





A editora Todavia lança outra versão este mês, organizada por Jerónimo Teixeira, num resgate amplo de Pessoa que também tem trazido às livrarias edições frescas do clássico “Mensagem”, seu único livro publicado em vida no idioma natal, e de coletâneas de Alberto Caeiro e Ricardo Reis – que também são Pessoa, apesar de não serem.

Esses heterônimos, afinal, são personalidades próprias criadas com esmero pelo escritor, um dos traços mais distintivos de seu projeto literário. Não se trata da simples assinatura de textos com pseudônimo: aqui há o gesto de elaborar de fato novos autores, com biografias, visões de mundo e trejeitos particulares.

“Pode-se dizer que os quatro maiores poetas de Portugal do século 20 foram Fernando Pessoa”, escreve Richard Zenith no prefácio de seu livro. Mais que subterfúgio literário, segundo ele, esse era um exercício voraz de expansão de si mesmo.





“Pessoa queria sentir tudo de todas as maneiras”, afirma. “Quando ele escreve sob outro eu, há muita autobiografia também, ainda que um pouco distorcida. São aspectos do que ele era ou sonhava ser.”


Dândi

Álvaro de Campos, por exemplo, parecia ser o oposto de Pessoa. Enquanto este era um homem cerebral e tímido, o heterônimo era um dândi espalhafatoso, viajante contumaz, com vida sexual ativa com homens e mulheres.

A lista de assinaturas é tão ampla – Caeiro, Reis e Campos são só as mais bem delineadas – que tornam um desafio separar o que era opinião real e o que era performance do escritor. Mas talvez este seja um esforço fútil – afinal, como diz um de seus textos mais célebres, o poeta é um fingidor.





Zenith, um dos especialistas mais capacitados para fazer essa depuração, lembra o agravante de que Pessoa não era alguém de ideias fixas. “Em 1915, ele publicou um texto dizendo que o intelectual moderno tinha a obrigação cerebral de mudar de opinião várias vezes no mesmo dia. E ele mudava, porque tinha mentalidade flexível, estava sempre a reconsiderar.”

Isso vale para as posições políticas. Libertário, foi de um republicanismo feroz no período final da monarquia portuguesa, mas depois se desiludiu com a política partidária e passou a condenar sua instabilidade. “Houve um período, por volta de 1920, em que sua política era bastante reacionária.”

Com a ascensão do fascismo pela Europa, Pessoa teve amigos que defendiam Benito Mussolini, ao qual ele jamais aderiu. Quando a ditadura que descambaria no salazarismo começou a se instalar, em 1926, deu a ela “o benefício da dúvida” num primeiro momento, segundo Zenith.





“Mas quando viu a repressão da palavra, a censura, a interferência na vida pessoal, ele se tornou completamente contrário ao governo. Aquelas ideias reacionárias de antes, quando desconfiava da democracia, foram mudando. Era crítico ao humanitarismo, mas se tornou bastante humanitário ao fim da vida.”

Império

“Mensagem”, por exemplo, evidencia “ideias fantasistas” de Pessoa em prol do domínio cultural do império português sobre o mundo. “Mas depois, com os pés na terra, ele reagiu a isso”, afirma o biógrafo.

A fluidez de opiniões – no limite, de identidades – faz com que o escritor fale mais com os leitores de hoje do que com os de sua própria época, segundo o biógrafo. É bom lembrar, aliás, que o grosso de sua obra foi publicado depois de sua morte em 1935 – a primeira edição do “Livro do desassossego” só viu a luz do dia em 1982.





Se na primeira metade do século 20 os críticos costumavam enxergar seus heterônimos como uma “brincadeira curiosa”, o leitorado de hoje é mais aberto a abraçar a literatura de “um ser que é muitos seres”, a aceitar a falta de um eu sólido e coeso.

“Os críticos de antigamente tinham mais interesse nos textos assinados pelo próprio Pessoa, porque viam nos outros falta de sinceridade”, afirma Zenith.

Hoje em dia, assumir outras personalidades para se expressar artisticamente não é entendido como disfarce, menos ainda desonestidade. “Temos uma noção melhor de que, de certo modo, estamos sempre a representar”, diz o biógrafo. 

(foto: Companhia das Letras)

“PESSOA: UMA BIOGRAFIA”
• De Richard Zenith
• Tradução Pedro Maia Soares
• Companhia das Letras
• 1.160 páginas
• R$ 199,90

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