Mukanda, segundo o "Dicionário Kimbundu-Português" de António de Assis Junior, significa carta. De acordo com o "Novo Dicionário Banto do Brasil", também quer dizer escrita e papel. Mas, nas páginas de Marcelo D'Salete, o termo ganha mais significados. Mukanda vira uma arma e a expectativa de recuperar o futuro e o passado.
Depois de contar histórias contemporâneas e ser premiado com HQs como "Cumbe" e "Angola Janga", sobre a escravidão no século 17, D'Salete, de 44 anos, lança "Mukanda Tiodora", ainda de olho na escravidão no Brasil, mas numa narrativa que se passa no século 19.
Tiodora, uma mulher escravizada, pede que Claro, um homem também escravizado, mas alfabetizado, escreva uma carta para Luís, seu marido, pedindo dinheiro para sua alforria. Quando o tropeiro que entregaria a carta não aparece para buscar a moça, o menino Benê decide acompanhar os seus passos. No percurso, temos vislumbres da realidade social da São Paulo dos anos 1860.
D'Salete afirma que o Brasil do século 17, retratado nas histórias anteriores, é formado por espaços e conflitos bem definidos. As histórias de "Cumbe" mostram a resistência dos negros escravizados à violência das senzalas dos engenhos de cana-de-açúcar; e "Angola Janga", o "reino africano dentro da América do Sul", o quilombo dos Palmares.
Resistência
Já em "Mukanda Tiodora", as estratégias de resistência e luta por melhores condições de vida se diversificam. Se ainda há quilombos - a região do Saracura, onde hoje fica o bairro do Bexiga, abrigou fugitivos e negros aquilombados -, negros libertos fortalecem uma segunda luta abolicionista nas esferas intelectuais.
D'Salete encontrou Tiodora pela primeira vez em "Sonhos africanos, vivências ladinas: Escravos e forros em São Paulo", livro da historiadora Cristina Wissenbach, da Universidade de São Paulo. A obra é fruto da pesquisa de mestrado da acadêmica, que se debruçou sobre os arquivos do estado de São Paulo, principalmente sobre a coleção de processos criminais da capital. Foram cerca de 150 casos em que aparecia a figura do escravizado, entre eles o de Tiodora.
"Quando eu li essas cartas, percebi que a Tiodora era uma personagem incrível para pensar São Paulo no século 19", disse o autor. "Algumas delas são bem simples, curtas, quase bilhetes. Mas são cartas que carregam uma profundidade e força extraordinárias."
Na vida real, Teodora Dias da Cunha - ou Tiodora, em alguns registros - veio de Angola e trabalhou em fazendas de café no interior de São Paulo. Construiu uma família, mas foi separada de seu marido e de seu filho após ser vendida e trazida para a cidade de São Paulo - poucos anos depois, seria aprovada uma lei que proibiria a venda em separado de famílias escravizadas.
Tiodora passou a viver na rua da Liberdade, como criada do cônego José da Terra Pinheiro. Ela era responsável por comprar mercadorias e outras tarefas que a levam às ruas, e é em uma dessas saídas que conhece Claro Antônio dos Santos, um carpinteiro negro e escravizado que sabia ler e escrever.
Em janeiro de 1867, é interrogada durante o inquérito policial que investigava um crime acontecido na casa do cônego José da Terra Pinheiro, seu senhor. Suspeitavam que Tiodora fosse cúmplice de um roubo praticado por Claro e Pedro, escravos de ganho - como provas incriminatórias, as cartas que Claro escreveu para ela.
Luiz Gama também é um dos personagens centrais do quadrinho. O intelectual negro, que frequentava o largo de São Francisco e recebeu o título póstumo de doutor honoris causa pela Universidade de São Paulo em 2021, lutava na Justiça pela libertação de pessoas que não poderiam ter sido escravizadas segundo a lei e conquistou a liberdade de centenas. Na trama, aparece junto a Ferreira de Menezes, outro intelectual negro, e seu caminho cruza o de Tiodora.
Ficção
"Precisamos compreender as muitas formas de atuação da população negra escravizada e livre naquele período", diz D'Salete, que acredita que a ficção também tem um papel no entendimento do passado.
A possibilidade de ir além dos registros animou Cristina Wissenbach quando D'Salete apresentou sua ideia. "O limite da minha interpretação como historiadora está naquilo que as fontes estão me dizendo", diz ela. "O interessante do uso criativo da história da Tiodora é essa liberdade poética que os homens e as mulheres das artes têm de imaginar situações que não estão reveladas claramente nessas fontes."
"As obras de ficção permitem um tipo de leitura diferente das obras acadêmicas, elas ajudam a imaginar os períodos retratados por outros meios, mais sensíveis", afirma D'Salete. "Sem a arte e as narrativas ficcionais, isso acaba não chegando em grande parte das pessoas que podem ter contato com esses temas."
A poesia do autor, que escreve e ilustra suas obras, extrapola as palavras e permeia as pinceladas que compõem sua arte, que deixam marcas visíveis da tinta preta sobre a folha branca, em um jogo de contrastes que remete à litogravura. Os rostos expressivos dos personagens dividem quadros com os cenários de construções e natureza, que parecem querer dar seus próprios relatos sobre a época.
Em geral, os balões de fala são econômicos. D'Salete, que tem sua formação nas artes plásticas, aposta no visual para conduzir suas histórias. "Grande parte do trabalho que eu faço é tentar resumir essas narrativas em imagens. Eu considero que a imagem tem o papel crucial de possibilitar diferentes formas de leitura de um determinado fato."
"Mukanda Tiodora"
• Marcelo D’Salete
• Editora Veneta
• R$ 79,90