Em um cenário de retorno do interesse do público por shows gravados para assistir em streamings ou colecionar em DVDs, a cantora paulista Ana Cañas lançou recentemente a versão audiovisual de seu álbum em homenagem a Belchior – “Ana Cañas canta Belchior”. Em quase três anos se dedicando ao repertório do cantor e compositor cearense – foram mais de 80 shows por todo o Brasil –, ela agora aposta na qualidade estética da gravação para chegar à casa dos fãs que não puderam assistir in loco ao show.
Em BH, foram dois dos mais emblemáticos shows da turnê, segundo ela. Um no Sesc Palladium e outro n'A Autêntica, em um sábado catártico, véspera do segundo turno das eleições presidenciais. Além da capital, depois de São Paulo, Minas foi o estado que mais recebeu Ana Cañas cantando Belchior. De cabeça, ela se lembra de Conceição do Mato Dentro e Juiz de Fora, mas se declara apaixonada pelas Gerais.
"O Brasil ama o Belchior, mas temos as idiossincrasias culturais de cada região, pois estamos num país de dimensões continentais. Eu acho que o Nordeste, e Minas incluída, é um povo que não tem medo do afeto. Eu costumo definir o nordestino dessa forma, e Minas eu incluiria, porque é cultural e é fato que externar emoções, no Brasil, é mais da metade pra cima," define a cantora.
A admiração pela obra do artista sobralense, entretanto, une o país de norte a sul, como ele mesmo fizera em seu périplo de vida e nas letras de sua obra. Nascido no Ceará, em 1946, Antônio Carlos Belchior faleceu em Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul, em 2017, em um exílio autoimposto. Antes, porém, Belchior chegou a passar fome em São Paulo, como narra na letra de "Fotografia 3x4", e provocou debate ao questionar o tropicalismo de Caetano Veloso, como também fizera em "Apenas um rapaz latino-americano".
"Ele passou uma mensagem muito clara de que queria que o deixassem em paz. Quando deu aquela famosa entrevista para o 'Fantástico', concedida a Sônia Bridi. Ele atende a jornalista e deixa muito claro que ele escolheu aquilo. É um mistério até hoje, ele em Santa Cruz, e toda essa viagem dele pelo Sul, tendo nascido no extremo Nordeste do Brasil.”
O Brasil ama o Belchior, mas temos as idiossincrasias culturais de cada região... Eu acho que o Nordeste, e Minas incluída, é um povo que não tem medo do afeto
Ana Cañas, cantora
Repertório
Para a cantora, tudo isso é um reflexo do que Belchior escreveu. “Ele traduziu o Brasil nas suas canções. Eu fiz 80 shows ano passado, atravessei o país, cantei em praças de cidades muito pequenas, cantei nos maiores teatros do Brasil e posso dizer que o Belchior tem a essência do povo brasileiro," reflete Ana Cañas. "Eu vi pessoas muito simples, que não tiveram acesso à cultura e educação, muito emocionadas e aos prantos, como pessoas muito letradas, igualmente emocionadas. Isso eu acho que é a maior lindeza do Belchior: ser profundo e poético e, ao mesmo tempo, acessível."“Veloso, o sol não é tão bonito pra quem vem do Norte e vai viver na rua” (“Fotografia 3x4”). “Mas sei que nada é divino / Nada / Nada é maravilhoso, nada / Nada é secreto, nada / Nada é misterioso / Não (…)” (“Apenas um rapaz latino-americano). Ambas as canções estão no repertório do show de Ana Cañas, acompanhadas de clássicos de seus dois álbuns mais famosos, "Alucinação", de 1976, e "Coração selvagem", de 1977.
Consagrada na voz de Vanusa, em 1975, em seu álbum "Amigos novos e antigos", Cañas recebe ninguém mais, ninguém menos que Ney Matogrosso para cantar "Paralelas" consigo. Também o rapper Rael está presente ao lado da cantora na faixa “Antes do fim”, na gravação feita no Estúdio NaCena, em São Paulo, com direção de Hugo Moura."Eu sempre quis juntar a lírica belchioriana ao rap, porque acho que tem muito a ver," revela.
Cañas ganhou dos filhos de Belchior uma canção inédita do pai. Mikael e Camila estiveram com a artista e participaram do DVD em um segmento documental. Além dos clássicos e algumas canções "lado b", a inédita “Um rolé no céu” completa o repertório do show.
Lirismo
Segundo a intérprete, cantar Belchior já é difícil por si só, mas se torna ainda mais desafiador por ter sido gravado e regravado ao longo das décadas por artistas como Elis Regina, Vanusa, Emicida e tantos outros. O show está disponível no YouTube da cantora, mas ela acredita não se tratar do encerramento definitivo deste ciclo em sua vida, que, para ela, começou desde antes deste tributo, com histórias de sua mãe envolvendo costura e a obra de Belchior, em um movimento que transcende gerações."Às vezes, eu vejo nos meus shows neto, filho e avô. É muito comum ver três gerações de uma família no meu show e toca o coração, porque o lírico é perene", diz Cañas. E completa: "esse lirismo poético que a MPB carrega, que torna as canções eternas, meu coração brilha e acende com mais força, porque precisa de uma capacidade muito mágica ser um ser humano que consegue capturar a essência de um povo e traduzir em canções que não sejam uma moda ou uma canção que dure três meses. Uma canção que vai ficar cravada no coração do povo e o Brasil tem uma capacidade gigante de fazer isso”.
Ele traduziu o Brasil nas suas canções. Eu fiz 80 shows ano passado, atravessei o país, cantei em praças de cidades muito pequenas, cantei nos maiores teatros do Brasil e posso dizer que o Belchior tem a essência do povo brasileiro
Ana Cañas, cantora
Novos projetos
Já com planos para o próximo projeto, Cañas evita dar spoiler, mas adianta ser uma colaboração com um parceiro com quem já trabalhou e se tornou um grande hit nacional, mas acredita que irá fazer o show em homenagem ao Belchior para o resto da vida."Eu já tenho uma saudade antecipada. Sempre vai ter um contratante em algum lugar querendo o show do Belchior, porque é muito especial, mas chega uma hora em que a gente tem que seguir em frente e renovar para novas possibilidades. Também acho que é muito alvissareiro esse projeto novo com esse outro parceiro, mas, por enquanto, esperemos notícias mais pra frente, não com o encerramento de ciclo do Belchior, acho que ainda tenho esse ano todo pela frente, porque tem lugares onde não cheguei," finaliza ela, que revela ainda não ter se apresentado com o show em Sobral, no Ceará, terra natal de Belchior.
* Estagiário sob a supervisão da subeditora Tetê Monteiro
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