O solo poeirento e árido, o sol forte e o calor incessante às margens do Rio São Francisco forjaram a imagem que os mineiros têm do Vale do Jequitinhonha, independentemente da cidade que se trata. A região, contudo, tem mais a oferecer do que meras intempéries. 



No segmento artístico, por exemplo, cancioneiros e artesãos se destacam por uma produção vigorosa, que oferece ao público outra perspectiva da região.

O multiartista Armando Ribeiro é um dos que fazem isso - e de maneira literal, diga-se. Tendo o barro como matéria-prima, transforma em peças de cerâmica cenas do cotidiano dos jequitinhonhenses e eventos históricos que marcaram a região.

Natural de Governador Valadares, Armando viveu a maior parte da vida no Vale, entre as cidades de Caraí e Padre Paraíso. Foi lá que descobriu e se interessou pela cultura, pelos costumes e pela peculiaridade do local.



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“Foi ali que eu vivi minhas primeiras impressões do mundo. Lembro de minha mãe estar sempre lendo e meu pai desenhando, enquanto eu ficava livre, brincando com as outras crianças na roça”, conta.

A origem do artista se reflete em suas obras. Entre as de maior destaque, por exemplo, está “São José com o Menino Jesus brincante”, na qual Armando esculpiu as figuras religiosas com traços e características de moradores das cidades do Vale. 

Na peça, um homem de grandes proporções está sentado em cima da igreja que ele mesmo acabou de construir e, ao seu lado, está um menininho brincando com um carrinho de brinquedo. As duas figuras, contudo, são maiores do que a igreja e ocupam todo o telhado do templo.



Neste ano, Armando Ribeiro deixou o Vale e se mudou para Carmo de Minas, no Sul do estado

(foto: Acervo pessoal)

Resistência

 “Esse trabalho surge da ideia de que o povo e sua religiosidade, muitas vezes, é maior do que a igreja (enquanto instituição). Por isso, São José e o Menino Jesus estão em cima dela e são feitos em proporções muito maiores que o próprio templo”, explica o artista.

Em outra obra, uma série de esculturas em barro intitulada "Guerreiros Boruns”, o artista presta uma homenagem aos indígenas que viveram na região do Jequitinhonha e resistiram à invasão de seu território pelos colonizadores. 

As peças criadas na cerâmica por Armando Ribeiro na série "Guerreiros Boruns” são representações de rostos indígenas com os tradicionais botoques auriculares e labiais. Acima dos cocares há animais (pequenas aves ou répteis). De acordo com o artista, esses bichos assumem a função de elementos espirituais, representando a conexão entre o Céu e a Terra, as forças da natureza e a presença humana.



A religiosidade é um dos temas retratados nas peças produzidas por Armando Ribeiro

(foto: Acervo pessoal)

Frei Chico

 Muito desse interesse de Armando pelos povos originários, pela regionalidade e pelo misticismo vem de sua formação como historiador e, sobretudo, pela influência que o frade franciscano Francisco van der Poel, mais conhecido como Frei Chico, exerceu sobre ele.  Grande parte da fonte de pesquisa de Armando, inclusive, foram os trabalhos do franciscano.

“O Frei Chico foi, na minha construção simbólica, um herói para mim”, afirma. “Ele fez com que as pessoas de fora do Vale olhassem para o que o povo de lá estava fazendo com mais admiração”, emenda.

Nascido em Zoeterwoude, na Holanda, Frei Chico veio para o Brasil em 1967, logo que se ordenou padre. A primeira cidade em que morou foi Araçuaí, tida então como uma das mais pobres do Vale do Jequitinhonha.

Foram 10 anos vivendo na cidade. Nesse período, em parceria com a artista Maria Lira Marques, Frei Chico passou a registrar rezas, benditos, batuques, técnicas de trabalho, remédios, “sabenças” e histórias do povo do Vale, fazendo dele, além de grande entendedor, um enorme divulgador da cultura local.





“O trabalho dele sempre me iluminou. Sempre estive onde ele ia falar e tenho muitas das obras dele, inclusive o ‘Dicionário (da religiosidade popular’), no qual ele narra todos os registros que fez com Lira Marques”, conta Armando.

Frei Chico morreu no último dia 14 de janeiro, aos 82 anos, em decorrência de meningite.

Antropofagia

 O curioso, no entanto, é que precisou de um estrangeiro chancelar as produções do Vale do Jequitinhonha para que os demais brasileiros começassem a valorizá-las. 

“Isso tem muito a ver com a violência colonial, que ainda é muito forte simbolicamente”, ressalta Armando. “No entanto, acho que há um aspecto antropofágico nisso”, emenda.

De acordo com ele, foi preciso que “o colonizador fosse comido e se deixasse ser digerido pela cultura local”, assim como propunha Oswald de Andrade.

É esse processo que Armando Ribeiro também pretende assimilar. No dia em que concedeu a entrevista ao Estado de Minas, tinha acabado de se mudar para Carmo de Minas, no Sul do estado, local com costumes e cultura totalmente distintas das de Padre Paraíso.

“É uma outra realidade, né? Mas, quanto mais eu conseguir fazer uma síntese de todas as referências, acredito que melhor será o resultado dos meus trabalhos”, afirma.

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