Gustavo veio primeiro. Dez minutos depois, chegou Otávio. Um susto, exame nenhum apontava que seriam dois. Nascidos de sete meses, naquele 29 de março de 1974, os caçulas do casal Walter e Margarida Pandolfo não iriam vingar. Foi o que a própria mãe ouviu do obstetra no elevador do hospital. “Acha que vão morrer? Então aqui não vão ficar.” 

O casal pegou os dois bebês minúsculos e os levou para casa, no Cambuci, região central de São Paulo. Dia e noite, Margarida e uma irmã cuidaram deles. Um amigo da família, pediatra, conseguiu as incubadoras que os salvaram.





“Todo mundo vem com uma missão na vida. Mas tem muita gente que passa por ela sem descobrir. Nós descobrimos muito cedo, a partir do momento em que entendemos que desenhávamos juntos e que queríamos o mesmo estilo”. Quem disse isto, se Gustavo ou Otávio, não faz diferença. Está tudo na conta d’OsGemeos.

Não há um só trabalho em uma trajetória que teve início na adolescência, na década de 1980, que tenha sido obra de um só, eles garantem. O que um começa, o outro termina, e vice-versa. Com abertura para o público na próxima quarta-feira (22/2), no CCBB, a exposição “OsGemeos: Nossos segredos” perfaz o caminho que os trouxe até os dias atuais, como artistas tanto celebrados no meio da arte contemporânea quanto facilmente reconhecíveis pelo público em geral.  

A exposição, que reúne quase mil itens, é um desdobramento da mostra “Segredos”, apresentada em 2020 na Pinacoteca de São Paulo, com curadoria de Jochen Volz. Esta teve uma segunda versão, no Museu Oscar Niemeyer (MON), em Curitiba. Tornou-se maior e, com o nome de “Nossos segredos”, chegou ao CCBB-Rio, onde ficou até janeiro – foi visitada por 830 mil pessoas, o que fez dela uma das cinco exposições de maior público daquela instituição.   

A versão que chega a Belo Horizonte (é a primeira vez que os artistas ganham uma grande mostra na cidade) é ainda maior, com alguns trabalhos extras. E é também diferente das demais, porque, a cada nova montagem, eles interferem nas obras. A escultura “Gigante”, que está dominando o pátio do CCBB, junto ao “Templo” (uma casinha colorida com duas entradas, que exibe projeções na parte interna) ganhou nova configuração, por exemplo.

Playlist especial

A sala “Um mundo, uma só voz”, que abre a exposição no terceiro andar, era uma das últimas nas versões anteriores da mostra. Ali, dezenas de caixas de som, todas com pinturas da dupla, recebem o visitante com uma playlist criada por eles para a exposição – Milton Nascimento e Paulinho Pedra Azul foram incluídos para a versão em BH, garantem. No centro, uma mesa de discotecagem profissional ou uma escultura? As duas coisas, que remetem à trajetória dos irmãos.




A carreira d’OsGemeos está diretamente ligada à chegada do hip hop no Brasil. Crianças ainda, Gustavo e Otávio viam “os caras pintando grafite” em muros do Cambuci. Aos 8 anos, conheceram a Pinacoteca, quando fizeram um curso de arte com Paulo Portella Filho. “Foi uma das primeiras vezes que pegamos spray para pintar.”

Já nesta época, desenhavam de forma obsessiva. Na escola pública, não prestavam atenção na aula. Tanto que os professores decidiram separá-los, colocando os irmãos em turmas diferentes. Não deu certo: houve um concurso de desenho para escolas estaduais de São Paulo. Gustavo e Otávio fizeram, em separado, seus desenhos. Que eram exatamente o mesmo! Ganharam o prêmio principal e, com ele, uma viagem para Brasília. Levaram a avó, Dorinda, com eles.

Tal história pode ser acompanhada na retrospectiva que abrange boa parte da exposição. Estão ali cadernos, desenhos, fotografias, músicas, trabalhos, livros de referência, obras de artistas que os influenciaram e ajudaram.




 
Entre os mais importantes estão o alemão Loomit, que os levou para sua primeira exposição na Europa, e o americano Barry McGee, que conheceram em São Paulo, em 1993, durante uma residência artística que trouxe o estrangeiro para uma temporada no Museu Lasar Segall.

Descobriram o hip hop em 1984. “Foi quando entendemos que os desenhos tinham estilo.” Em busca de sua própria identidade, pintavam sem parar. Seu ateliê era um quarto no sobrado do Cambuci, onde viviam com os pais e os irmãos mais velhos, Arnaldo e Adriana. Fotos exibem a dupla de garotos em meio ao muro de casa – como era a parede que tinham, pintavam cada vez de uma maneira.

A primeira vez que o nome deles apareceu no jornal foi numa reportagem de 1988. “Na opinião dos gêmeos Gustavo e Otávio Pandolfo, de 14 anos, cantores de rap...” No Metrô São Bento, berço do hip hop nacional, eles fizeram de tudo. Cantaram, dançaram break, aprenderam a discotecar. “Nunca sabiam quem era quem, então começaram a nos chamar de Os Gêmeos. Achamos o nome bacana para poder assinar.”





Gustavo e Otávio Pandolfo acompanharam a montagem da exposição em BH, produzindo novas intervenções em suas obras

(foto: Jair Amaral/EM/D.A Press)

Roupas feitas pela vovó

Sem dinheiro para comprar as roupas que viam com os rappers de fora, conseguiram ficar tal e qual com o modelo de calça e agasalho confeccionado pela avó, costureira. Um manequim exibe a roupa na exposição – o boné foi feito de toalha, contam.

Na década de 1990, com a preocupação constante sobre a identidade do trabalho, decidiram que o amarelo – “Que é forte, para cima e transmite coisas boas” – seria a cor predominante. Sem nenhum estudo formal em arte – “Nossa educação foi nos trancarmos no estúdio e desenharmos sem parar” – foram descobrindo a perspectiva, os detalhes, a diferença dos traços e as figuras que hoje povoam tantos lugares.

A retrospectiva vai chegando a tempos mais próximos. Há uma boa seção dedicada ao processo criativo da dupla. OsGemeos já fizeram grandes murais em aproximadamente 40 países – de um castelo na Escócia à célebre Tate Modern, em Londres. “Às vezes, as pessoas veem trabalho como estes e não sabem como foi o processo. Para nós, tudo parte de um papel com desenho. Dele já riscamos a parede, sem projeção, tudo no olho mesmo”, contam. 





A mostra evolui para uma sala que apresenta o Tritez, o universo lúdico que eles partilham desde a infância. “Acreditamos que é um universo de onde se vem e para onde se vai. É um lugar muito bonito e mágico, então por que não reproduzir isto para dividir com as pessoas?” Além das pinturas que expõem tais imagens, há na seção cadernos com os relatos que eles escreveram sobre o Tritez.

Uma sala, de nome “Vida urbana”, traz grandes telas com representações da cultura urbana. A ligação com a música pode ser vista também numa sala que reúne uma instalação com 288 capas de LPS de artistas populares dos anos 1970 e 1980 (Roberto Leal e Menudo estão em meio a nomes pouco conhecidos) que ganharam intervenções dos artistas.

Parceria com Banksy

Um destaque da mostra é a sala, já no final da visitação, que reúne as duas telas que OsGemeos produziram com Banksy, em uma das poucas colaborações que o célebre artista britânico já fez na carreira. Há ainda uma sala com o “Quarto da Lua”, uma instalação em que se vê a Lua (ela mesma) dormindo – o visitante só acompanha a cena por meio de uma janela.





“Nossos segredos” ainda revela uma das faces menos conhecidas d’OsGemeos. No hall de entrada do prédio, a sala principal vai apresentar os trabalhos de Margarida. Há bordados dela e outros em parceria com os filhos, a partir dos desenhos que eles fizeram. 

Sem que a mãe soubesse, Otávio e Gustavo organizaram a mostra, que estreia justamente em BH. No ano em que alcança os 80, a bordadeira que peitou o obstetra quase 50 anos atrás ganha sua primeira exposição.

“OsGemeos: Nossos segredos”

Exposição no Centro Cultural Banco do Brasil, Praça da Liberdade, 450, Funcionários. Abertura na próxima quarta-feira (22/2), 
às 12h. Visitação de quarta a segunda, das 10h às 22h. Entrada franca. Ingressos podem ser retirados na bilheteria ou no bb.com.br/cultura. Até 22 de maio.

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