Como representar a xenofobia e o racismo? Em “Infiel”, HQ lançada pela editora Pipoca & Nanquim no Brasil, esses preconceitos encaram corpos flácidos e disformes com garras, dentes e palavras que dilaceram. O odor é de carne estragada já acinzentada, que atrai todo tipo de insetos e larvas.
Pornsak Pichetshote e Aaron Campbell, dois nomes de relevo do quadrinho americano, se juntaram para reimaginar o terror de casa assombrada em uma versão contemporânea do gênero clássico.
A HQ conta a história de Aisha, jovem americana muçulmana de origem paquistanesa. Após o prédio em que sua sogra, que é branca, sofrer um ataque terrorista, ela se muda para lá com o marido e a filha. Com o tempo, Aisha e seu grupo de amigos de diferentes etnias descobrem que o edifício está assombrado por entidades que se alimentam de xenofobia – abundante por lá.
O quadrinho não é a única obra que revisita o gênero. “A maldição da Residência Hill”, série de Mike Flanagan inspirada em livro de Shirley Jackson lançado em 1959, é um exemplo de história de casa assombrada que ganhou bastante popularidade nos últimos anos.
O diferencial de “Infiel”, além da arte aterrorizante de Campbell, está em discutir um tema urgente, sobretudo nos Estados Unidos.
“Foi uma maneira de usar o terror e os quadrinhos para participar da conversa sobre raça que, em 2018, eu sentia que não estava ocorrendo de verdade”, diz Pichetshote. Ele começou a carreira como editor da Vertigo, selo de gibis adultos, e hoje escreve para a TV e para as HQs, além de fazer parte da produção de filmes da DC.
''Fui criado sob a falha do sonho americano. Experimentei em primeira mão como ele não funciona para todo mundo''
Pornsak Pichetshote, quadrinista
Absurdo, realista e grotesco
Aaron Campbell se juntou depois ao projeto e deu forma às ideias de Pichetshote. O ilustrador abusa do preto em páginas inteiras para detalhar os monstros, traço que fica entre o absurdo e o realista, à moda do japonês Junji Ito. A paleta do colorista José Villarrubia refina o grotesco ao adicionar camadas vermelhas de podridão.
“Muitas vezes, (a ideia) parte de pegar duas coisas que colidem e geram alguma fricção que me faz pensar: 'ei, aqui tem uma história que não foi contada antes'”, diz Pichetshote sobre seu processo criativo. “Acho interessante abordar coisas que não estamos discutindo.”
Ao buscar trazer novos assuntos para a pauta, o escritor conta que busca garantir que isso se dê de forma mais informativa, responsável e empática possível. Para isso, Pichetshote gosta de mergulhar na pesquisa antes de escrever histórias em quadrinho.
A opção pela temática de “Infiel” remete à vida do autor, filho de imigrantes. Os pais do quadrinista foram da Tailândia para os Estados Unidos antes de ele nascer, em busca de melhores oportunidades.
Quando o autor tinha 12 anos, eles voltaram para a Tailândia, convencidos de que, a partir dos acessos que tiveram nos EUA, poderiam ter uma vida melhor lá, o que se mostrou verdadeiro. “Fui criado sob a falha do sonho americano. Experimentei em primeira mão como ele não funciona para todo mundo”, diz.
Pornsak conta que a ideia do quadrinho surgiu ainda em 2009, quando Barack Obama foi eleito pela primeira vez. Ele via o país se parabenizando por ter lidado com o racismo e, ao mesmo tempo, a islamofobia se mostrava crescente, sem que ninguém enxergasse a incoerência entre essas duas coisas.
Ao longo da década seguinte – que caminhava para a primeira eleição de Donald Trump em 2017, um ano antes da publicação original do quadrinho –, o escritor observou avanços no debate sobre racismo e quis fazer parte desta discussão por meio de sua obra.
Pichetshote vê os quadrinhos como uma forma de deflagrar discussões. Acredita que o terror tem uma capacidade especial para isso. “É preciso tomar cuidado para que não vire algo exploratório, mas o próprio objetivo do terror é incomodar”, explica.
“Podemos falar sobre questões sociais que não nos deixam confortáveis no terror, se for feito corretamente, porque o gênero nos dá permissão para perturbar”, conclui.
"INFIEL"
. De Pornsak Pichetshote, José Villarrubia e Aaron Campbell
. Pipoca & Nanquim
. 180 páginas
. R$ 89,90
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