Em “A baleia”, Darren Aronofsky busca mostrar o que é ou quem é um homem – no caso, o patético Charlie, interpretado por Brendan Fraser.
Charlie é um professor de redação que toma o cuidado de deixar a câmera de seu computador desligada durante as aulas, para que seus alunos não tenham o desprazer de contemplar sua figura. Ele pesa uns 300kg e se arrasta pela casa com a ajuda do andador capaz de suportar seu peso.
Beleza e repugnância
O peso físico, diga-se, não é menor que o das dores que carrega. Charlie parece esperar pouco dos poucos dias de vida que lhe restam. Uma boa pizza todas as noites e o apoio da amiga Liz lhe bastam. E também a lembrança de seu companheiro, que já morreu. Um rapaz que via beleza ali onde as pessoas só enxergavam um corpo que lhes despertava repugnância. Mas esse lado ficará implícito durante a maior parte do filme.Ou seja, por trás da aparência lamentável existe um homem. Talvez seja esse o primeiro ponto, ou ao menos o mais evidente, do roteiro de Samuel D. Hunter, baseado em sua própria peça teatral. Nos guiamos com frequência por nossos preconceitos, que nos impedem de buscar um pouco mais fundo. E nos guiamos por aparências que nos vedam o acesso aos nossos semelhantes.
Em resumo, Aronofsky está aqui bem distante do gosto pelo brilhareco que o tornou conhecido, de “Pi” a “Cisne negro”, ao se fixar numa situação muito localizada (tudo se passa na casa de Charlie). Para não dizer que abandonou de todo o hábito das inovações inúteis, ele opta desta vez por um formato de tela quase quadrado, 1:1,33. Talvez não se trate de buscar um diferencial, como se diz, mas de um anacronismo.
O formato, de todo modo, se justifica. Quando busca o roteiro de Hunter como base, o diretor sabe que se apoia numa tradição da dramaturgia americana, a de Tennessee Williams, em particular, que rendeu tantos belos filmes nos anos 1950. Esses filmes produziam uma espécie de desnudamento das personagens e, por meio delas, a crítica de uma sociedade fundada sobre a hipocrisia e a completa falta de sinceridade. No geral, uma personagem passava por esse processo.
A diferença, aqui, é que Charlie, com seu peso de baleia e sua presença incômoda, produz o desnudamento de mais algumas pessoas ao seu redor, da filha Ellie, papel de Sadie Sink, à enfermeira sua amiga, feita por Hong Chau, do jovem pregador à ex-mulher.
Todos, cada um ao seu modo, participam de uma sociedade em que o disfarce, a negação daquilo que alguém pensa e é, torna-se uma espécie de regra geral. A ideia que Charlie deseja transmitir aos seus alunos é que um texto só tem algum interesse por aquilo que revela de verdadeiro sobre o autor, e não das convenções ou regras de escrita.
O que faz todo sentido, já que ao longo do filme os personagens passam pelo processo de desnudamento desencadeado por Charlie. Ponto importante: Charlie encontrou e assumiu sua verdade anos atrás, quando se apaixonou por outro homem e abandonou a família.
Moby Dick
Essa busca de ruptura com as inverdades em que vivemos se apoia na interpretação do “Moby Dick”, de Melville, segundo a qual o narrador conta detidamente uma história para não ter de tratar da sua. Aronofsky se serve de Charlie para optar por uma direção mais próxima do classicismo, que não lhe dará as mesmas glórias do passado.Tanto que “A baleia” foi indicado para o Oscar de melhor ator (Fraser), atriz coadjuvante (Chau) e maquiagem. Ao menos no terceiro quesito não será derrubado facilmente. O diretor, festejado por seu “Cisne negro”, ficou de fora – a discrição nunca rendeu grandes prêmios.
“A BALEIA”
EUA, 2022. Direção de Darren Aronofsky. Com Brendan Fraser, Hong Chau e Sadie Sink. Professor de inglês recluso, com obesidade mórbida, tenta se reconectar com a filha adolescente em sua última chance de redenção na vida. Em cartaz nas redes Cinemark, Cineart e UNA Cine Belas Artes