Um duplo resgate – de uma artista célebre e de uma linguagem cênica – baliza o espetáculo “Carmen Miranda, a grande Pequena Notável”, que ocupa, a partir desta sexta-feira (24/2), o palco do Teatro 1 do CCBB-BH, onde fica em cartaz até o dia 13 de março. Com direção de Kleber Montanheiro e protagonizada por Laila Garin, a encenação se vale da linguagem do teatro de revista para recontar a vida da cantora e atriz portuguesa que se radicou no Brasil.
A montagem estreou em 2018, no CCBB de São Paulo, no contexto das comemorações pelos 110 anos de nascimento de Carmen Miranda, e, além da capital paulista, passou também pelo Rio de Janeiro. A temporada em Belo Horizonte marca a primeira vez que “Carmen Miranda, a grande Pequena Notável” sai do eixo Rio-São Paulo.
Além da efeméride dos 110 anos, o que motivou a criação do espetáculo foi a percepção do diretor de que, para as gerações mais novas, Carmen Miranda é praticamente desconhecida. Montanheiro diz que o impulso de trazer a personagem à baila foi algo que se conectou imediatamente com o desejo de explorar a linguagem do teatro de revista.
“Certo dia, eu estava dando aula, falando sobre o teatro musical brasileiro, os compositores e cantores daquela época, e mencionei Carmen Miranda, por ser uma pioneira, no sentido de levar a brasilidade para fora do país. Aí uma aluna falou: ‘Ah, eu sei, é aquela americana que usava coisas na cabeça’. Cheguei em casa e fiquei pensando que a gente estava perdendo uma parte da nossa história. Ali nasceu a ideia de criar um projeto sobre Carmen”, conta.
Duas biografias
O primeiro passo, conforme aponta, foi buscar informações para embasar o espetáculo. Montanheiro diz que leu a biografia da artista escrita por Ruy Castro (“Carmen: uma biografia”), que considerou muito densa, e depois chegou ao livro de Heloísa Seixas e Júlia Romeu, homônimo ao espetáculo.
“É uma obra mais simples, mais direta, que comunica de uma forma mais resumida. Eu não queria fazer um musical biográfico, no sentido de contar todas as passagens da vida de Carmen Miranda; queria mesmo deixar lacunas, até como forma de estimular as pessoas a buscarem informações”, afirma.
Vencedor do prêmio da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil na categoria melhor livro de não ficção em 2015, “Carmen Miranda, a grande Pequena Notável” tem como proposta apresentar para crianças e adolescentes o universo artístico da homenageada. Montanheiro diz que ampliou esse espectro, de forma a criar um espetáculo para toda a família, com camadas que dialogam com crianças, jovens e adultos.
Ele conta que procurou as autoras, fez a proposta de adaptação e elas mesmas se incumbiram de fazer o roteiro de transposição para o palco. “Trabalhamos muito juntos nessa montagem. Foi uma via de mão dupla, com eu sugerindo coisas e elas pontuando essas sugestões”, destaca. A linguagem mais direta do livro permitiu, ainda, que o espetáculo fosse estruturado nos moldes do teatro de revista, segundo o diretor.
Montanheiro diz que já estuda essa vertente das artes cênicas há muito tempo e tem se ocupado em trazê-la à superfície sempre que possível. Na estrutura do espetáculo, foi utilizada a divisão em quadros, com a possibilidade do reconhecimento imediato de tipos brasileiros e a musicalidade presente, com uma banda executando ao vivo os temas, que colaboram diretamente com o texto falado, não apenas como apêndice, mas como dramaturgia cantada.
O diretor chama a atenção para o fato de que esse tradicional gênero popular fez parte da identidade cultural brasileira, mas entrou em processo de desaparecimento da cena teatral por falta de conhecimento, preconceito artístico e valorização de formas americanizadas e/ou industrializadas de musicais. Ele aponta que o teatro de revista vicejou no Brasil durante cerca de 100 anos, entre 1859 até a década de 1960 do século passado, quando entrou em decadência.
Identidade nacional
“É uma modalidade cênica que revelou compositores como Noel Rosa e Pixinguinha. Tem toda uma leva de autores e dramaturgos que se destacaram por meio do teatro de revista e contribuíram para a construção de uma identidade nacional”, diz Kleber Montanheiro.
O diretor, que também responde por cenários e figurinos do espetáculo, comenta que quis levar para o palco um pouco desse clima, não com uma estrutura clássica dessa vertente cênico-musical, mas se aproveitando de algumas ideias que estavam em seu cerne, como o emprego de quadros rápidos, que vão saltando no tempo e contando a história da personagem.
Ele diz que a presença em cena da banda, formada pelos músicos Maurício Maas, Betinho Sodré, Monique Salustiano e Fernando Patau, se insere nessa dinâmica. “Minha ideia foi tentar absorver a banda dentro do espetáculo, por se tratar de um musical. A gente brinca com os músicos se deslocando pelo palco, atuando como o Bando da Lua, o conjunto musical que Carmen levou para tocar com ela nos Estados Unidos”, diz.
Interação em cena
O diretor ressalta que há uma interação estreita entre a banda e o elenco, que, além de Laila, conta com Daniela Cury, Gustavo Rezende, Luciana Ramanzini, Jonathas Joba, Júlia Sanchez e Roma Oliveira. “Gosto dessa coisa do musical em todos os sentidos, com os atores que cantam, que podem tocar algum instrumento em determinadas cenas, e com os músicos participando como personagens.”
A encenação tem a proposta de preservar a memória sobre a “Pequena Notável”, como a cantora e atriz era conhecida, e sobre a época em que ela fez sucesso tanto no Brasil como nos Estados Unidos, entre os anos de 1930 e 1950. Por isso, os figurinos da protagonista são inspirados nos desenhos originais das roupas usadas por Carmen Miranda; já as vestes dos demais personagens são baseadas na moda dessas décadas.
A cenografia reproduz os principais ambientes propostos pelo livro de Heloísa e Júlia: o porto do Rio de Janeiro, onde Carmen desembarca ainda criança com seus pais; sua casa e as ruas dos locais onde morou; a loja de chapéus onde ela trabalhou; o estúdio de rádio e os estúdios de Hollywood.
Prosódia e maneirismo
“As interpretações dos atores obedecem a prosódia de uma época, influenciada diretamente pelo modo de falar aportuguesado, e o maneirismo de cantar proveniente do rádio, onde as emissões vocais traduzem uma identidade”, aponta Montanheiro. Essa prosódia e esse maneirismo foram um desafio para Laila Garin – vencedora do prêmio Shell de melhor atriz pelo musical em que interpreta Elis Regina, que estreou em 2013 –, mas não o principal.
A protagonista assumiu o posto recentemente, substituindo Amanda Acosta, que encabeçava o elenco desde a estreia do espetáculo. Laila conta que teve apenas 15 dias para ensaiar e que se orientou pelo trabalho de sua antecessora no papel. “Estudei os vídeos da peça. Amanda vinha com um trabalho muito preciso, então eu já tinha um mapa detalhado dos gestos de Carmen, mas foi uma maratona”, conta.
Ela diz que a maior dificuldade foi alcançar o virtuosismo da personagem. “Eu nunca tinha me atentado para o modo realmente virtuoso como Carmen se expressa, a rapidez com que ela gesticula, sempre de forma articulada com o canto, que também é muito rápido. O desafio foi pegar isso com tão pouco tempo de ensaio”, destaca.
Fontes de pesquisa
Para compor a personagem, Laila Garin não se limitou aos vídeos do próprio espetáculo; sua pesquisa foi também bibliográfica e se estendeu a registros audiovisuais disponíveis na web. “Estou lendo a biografia do Ruy Castro, que é maravilhosa, não só por Carmen, mas também pela descrição que ele faz do Rio de Janeiro daquela época. E tem muita coisa de vídeos dela na internet”, diz.
A atriz conta que sua investigação on-line a levou a uma descoberta que achou curiosa. “Carmen falava muito grave. O canto dela era fino, agudo, mas a fala era grave”, observa. Ela ressalta que pesquisou não apenas sobre a artista, mas também sobre o teatro de revista, por ser uma vertente pela qual nunca havia se aventurado.
“É um gênero que não se pratica mais e com o qual eu não tinha contato. O espetáculo tem uma coisa de circo também. É tudo bastante novo para mim, e posso dizer que estou gostando muito da experiência. O que todos dizem a respeito do elenco é que a comunicação com o público é muito direta. Tem momentos em que a plateia torce, diz o que Carmen deve fazer, então tem sido bem prazeroso”, ressalta.
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Personalidade coquete
Para Laila, o traço mais marcante de Carmen Miranda é sua alegria contagiante e sua personalidade coquete. “Tem uma coisa de sedução que acho que é do espírito dela. Ela está seduzindo o tempo inteiro, e não é uma sedução ligada à sexualidade, por isso digo que é coquete.”
A artista afirma que, para compor a personagem, precisou absorver e incorporar essa característica. “Carmen tinha mesmo essa coisa da beleza, então não dá para eu entrar em cena sem me sentir bonita, porque ela sabia o magnetismo que tinha, um farol nos olhos, como diz o Kleber. Isso é o que seduzia as pessoas”, salienta.
O diretor, por sua vez, considera a força e a determinação como as características mais marcantes de Carmen Miranda. “Ela era à frente de seu tempo. Como artista, viveu quebrando tabus, criando uma marca estética e musical, revelando compositores e trazendo a coisa da espetacularização nos figurinos, o que é muito a marca dela. E se hoje a gente ainda sente que vive num país machista, pense em como era 90 anos atrás.”
“CARMEN MIRANDA, A GRANDE PEQUENA NOTÁVEL”
Musical com Laila Garin, a partir desta sexta-feira (24/2) até 13/3, com apresentações de sexta a segunda, sempre às 20h, no Teatro 1 do CCBB-BH (Praça da Liberdade, 450, Funcionários, 31. 3431-9400). Ingressos a R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia) na bilheteria física do CCBB-BH ou pelo site bb.com.br/cultura. Classificação indicativa: livre (recomendado para crianças a partir de 5 anos). No dia 11 de março, sábado, haverá uma sessão com intérprete de Libras.