Saias que terminam próximas aos pés, cores insossas e discretas, jeito acanhado mas incisivo e Bíblia na mão. Essa é a imagem do evangélico consagrada pela mídia depois de décadas de representações em segundo plano e, com frequência, estereotipadas.
Regatinha e jeans, rosto maquiado, jeito extrovertido e microfone na mão. É assim, no entanto, que a protagonista crente de “Vai na fé”, papel de Sheron Menezzes, se apresenta.
Nova novela das sete da Globo, a trama ilustra a mudança de espírito recente na televisão e no cinema brasileiros. Se antes obras de ficção recorriam a clichês ou ignoravam completamente os evangélicos, hoje há claras tentativas de exorcizar o preconceito e se reaproximar, diante de seu avanço nos dados demográficos.
Se eles beiravam 15% da população nos anos 1990, já são ao menos 31%, segundo pesquisa Datafolha de dois anos atrás. Até 2032, a expectativa é de que sejam o maior grupo religioso no país, destronando os católicos.
“Nossa matéria-prima é o Brasil e o brasileiro. Representar a sociedade de maneira contemporânea, inclusiva e afetiva é fundamental nesta missão. As transformações da sociedade brasileira sempre foram retratadas pelas obras de dramaturgia da Globo. Com a transformação religiosa em andamento, não será diferente”, diz Amauri Soares, diretor da emissora.
Soares afirma que a direção não intervém no trabalho dos dramaturgos, mas resultados de pesquisas e análises sobre espectadores são compartilhados para que sirvam de “insumo para o processo criativo”.
O fato de a maior emissora do país ter se ajoelhado diante dos números é bastante significativo, mas não é um caso isolado.
Plataformas apostam em séries focadas na periferia evangélica
Recentemente, a plataforma Star+ também deu a bênção aos evangélicos com a série “Santo maldito”. A Netflix já havia feito o mesmo com “Sintonia”.
Nos cinemas, “Nas ondas da fé”, “Céu de agosto”, “Divino amor”, “Medusa”, “O pastor e o guerrilheiro” e “Mato seco em chamas”, que estreou nas salas de exibição na última semana, engrossam o coro.
Há projetos guardados para o futuro, como “O Clube das Mulheres de Negócios”, filme de Anna Muylaert que terá mulheres representando pilares da sociedade brasileira, como a Igreja Evangélica, e “Pedágio”, em que Carolina Markowicz vai filmar a relação da mãe protestante com o filho LGBTQIA .
Cada obra encontrou um caminho para incorporar a fé na trama, com diferentes níveis de destaque. Nem sempre o roteiro fala sobre religião, mas ela está lá, mesmo que apenas como característica para que o público compreenda as motivações e atitudes de determinado personagem.
Em “Mato seco em chamas”, por exemplo, a trama é moldada a partir de figuras reais de Ceilândia, nos arredores de Brasília. Como várias delas frequentam templos, pareceu natural que os diretores Adirley Queirós e Joana Pimenta levassem a câmera para dentro de um deles.
Lá, puseram a lente no rosto de uma personagem que passa bons minutos cantando hinos de louvor, mesmo que aquilo não faça a história andar, e, na sequência, gravaram a mesma moça falando sobre o “rodízio de mulheres” que é sua vida amorosa, andando de moto, cantando funk e expressando o desejo de abrir um bordel.
“Historicamente, a gente tem uma visão estereotipada dos evangélicos. É um erro tremendo que a classe cinematográfica cometeu, fazendo parecer que esse universo é um monólito”, afirma o diretor Adirley Queirós, que se incomoda com o lugar “de idiota” no qual se convencionou pôr esses personagens, com frequência vistos como alívio cômico.
É com essa ideia que “Nas ondas da fé” brinca e, por fim, subverte. O filme ri com os evangélicos, e não deles. Assim, Marcelo Adnet interpreta o narrador de rádio gospel que mobiliza a massa de fiéis, mas fica claro que ele o faz por ser um homem do povo.
Enquanto se distancia de uma igreja já estabelecida, o personagem de Adnet vai mostrando que é possível compartilhar a palavra de Deus sem recorrer a caminhos pecaminosos.
Pastor conforta guerrilheiro na prisão
Em “O pastor e o guerrilheiro”, vemos um líder religioso que é preso pela ditadura militar – erroneamente, mas nem por isso ele deixa de confortar e se solidarizar com a luta de seu companheiro de cela, este sim membro da luta armada.
Em “Medusa”, meninas que cantam numa igreja evangélica percebem que é possível questionar as regras engessadas e extremistas que seguem.
Na série “Santo maldito”, o divino e o ceticismo ficam frente a frente quando o professor ateu remove o tubo de respiração da mulher em coma no hospital, fazendo com que ela volte do estado quase terminal em que estava.
Ao ver o vídeo do ocorrido, pastor de uma comunidade periférica, cheio de nuances, o aborda, crente em seu poder de evangelização.
“É muito perigoso a gente se isolar na nossa bolha, todo artista quer falar para o maior público possível”, diz o diretor da série, Gustavo Bonafé.
Augusto Madeira, que pela segunda vez interpreta um pastor, comenta: “Na classe artística há um preconceito muito grande, não acho que já exista equilíbrio.”
Jasmin Tenucci, do curta “Céu de agosto”, premiado em Cannes, prepara um longa-metragem que bebe da mesma fonte.
Ela concorda que existe preconceito e chama de “condescendência elitista” o retrato consagrado dessas pessoas no cinema e na TV, que os vê como limitados e enganados. Ou pior, como fanáticos, violentos e intolerantes.
Tenucci, no entanto, percebe uma mudança, em especial nos últimos dois anos, que credita não só a dados demográficos, mas também à influência da religiosidade na eleição de Jair Bolsonaro há cinco anos. Com isso, não só o audiovisual, mas a esquerda como um todo percebeu que dialogar era necessário, afirma a diretora.
De olho no mercado consumidor
A TV Record, com suas novelas bíblicas, viu estourar a audiência e emplacou filmes religiosos entre as maiores bilheterias do cinema no Brasil.
Priscila Chéquer, professora na Universidade Estadual de Santa Cruz, na Bahia, que estuda o fenômeno, diz que a emissora foi essencial para transformar os evangélicos em mercado consumidor aos olhos do audiovisual.
A professora afirma que é importante destacar a pluralidade do grupo dito “evangélico”.
Apesar de parecer massa homogênea para quem está fora, essa parcela da população é plural, seguindo um emaranhado de doutrinas, ritos e costumes que se distanciam por vários motivos.
Pastor-ator diz que mídia só mostra fundamentalistas
O ator, escritor e pastor Henrique Vieira, eleito deputado federal pelo PSOL do Rio de Janeiro, afirma que a vertente neopentecostal é, além da que mais cresce no país, aquela que mais recebe atenção da mídia, em detrimento de batistas, metodistas, presbiterianos e tantos outros. E há nesses grupos igrejas progressistas, com sacerdotes e fiéis engajados em causas como a luta racial, os direitos LGBTQIA , o feminismo e até mesmo a legalização do aborto.
“É importante dizer que existe um campo de fundamentalismo evangélico no Brasil perigoso e violento, e muitas pessoas carregam traumas por conta disso. Não estou aqui para romantizar a experiência evangélica, mas para mostrar que ela é uma religião diversa e de caráter popular”, afirma Vieira, que interpretou um frade no longa “Marighella”, de Wagner Moura.
Curiosamente, os evangélicos parecem trilhar o mesmo caminho dos LGBTQIA , que nos últimos anos têm conquistado espaço nas telas e posto fim à tentação de recorrer aos estereótipos que os subjugaram a papéis cômicos, vilanescos ou trágicos.
Questionado se a maior atenção aos espectadores evangélicos pode comprometer a aparição de pautas progressistas nas telas, o pastor e deputado Vieira diz torcer para que isso não aconteça, mas que dependerá da disposição de criadores e produtoras em enxergar esse público sem preconceitos.
“Espero que eles não peguem a perspectiva conservadora e transformem na única experiência existente no campo evangélico. Seria terrível, daria o sinal para a sociedade de que ser evangélico é isso e que não há outra possibilidade. Seria um gol contra, um desserviço para a própria democracia”, diz Henrique Vieira.