De Billy Wilder quase todo mundo sabe que foi um grande diretor de cinema. São muitos, embora nem tantos, os que conhecem sua habilidade como roteirista. O repórter que ele foi na juventude é bem menos famoso, e dele podemos tomar conhecimento pelo volume “Billy Wilder: Um repórter em tempos loucos”, organizado por N. Isenberg.
Ali encontramos bem marcados os traços do futuro cineasta – o humor agridoce, a observação rápida e profunda das cenas, a capacidade de buscar o levemente ridículo num ritual cheio de pompa, e por vezes o sarcasmo, o desgosto com o humano.
Há um pouco de tudo isso na história (em capítulos) que abre o volume, “Garçom, um dançarino por favor”, em que começa narrando suas atribulações de locatário desempregado, até que um amigo consegue para ele o emprego de dançarino num hotel.
Chá de cadeira
Estamos nos anos 1920, os hotéis de peso ofereciam recepções diárias para seus hóspedes, com orquestra e dançarinos profissionais, de modo que as moças e mulheres mais velhas não corressem o risco de tomar um chá de cadeira.Ali é fácil encontrar o roteirista e quase se poderia dizer o roteiro. A descrição de uma cena do primeiro dia de trabalho começa com “estou sentado em uma poltrona no saguão do hotel, uma poltrona macia, totalmente recostado, pernas cruzadas”.
“Este então é o hotel onde 'trabalharei'”, prossegue a narrativa. “O garoto das malas na porta giratória, achando que sou um hóspede, tira o chapéu graciosamente. Agita o casaco de cordeiro da Pérsia de uma moça com estreitos sapatos de couro de crocodilo, que roça contra meus joelhos, enquanto ela caminha na direção do elevador, sorri para o mensageiro, desaparece. Um valet, cheio de malas, anda aos tropeções até a porta, um cavalheiro com sobretudo e um pé teso coloca o nome no registro do hotel, enquanto o porteiro, com as costas curvadas, estende a mão para receber um casal idoso e o bartender equilibra dois manhattans e um refrigerante.”
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Está aí tudo que se pode esperar de um filme de Billy Wilder – a ambientação, os personagens e figurantes, o cenário e os adereços, o movimento, o humor e, claro, a capacidade de captar tudo num traço, de fazer com que vejamos a cena se desenrolando à nossa frente de imediato.
Os objetos mudam, mas o estilo se afirma mesmo quando o objetivo é um tanto publicitário, como ao comentar a abertura de uma nova cafeteria em Viena. “A confeitaria, o jornal, os cigarros, tudo aparece na velocidade da luz. Como você se sente confortável, patriarcal, naquelas poltronas de veludo”, escreve.
Mentira
Um artigo de 1927 surge imaculadamente novo em 2022. Nele se insinua o amargor transfigurado em humor de tantos de seus filmes. Ali, Wilder sugere que a mentira deveria ser introduzida como matéria escolar obrigatória, de forma que a mentira se tornaria acessível a todos, algo que vê como importante porque “em duas ou três décadas as mentiras serão vistas como implemento indispensável – e portanto totalmente irrepreensível – ao nosso cotidiano”.Os objetos são diversos, de hotéis a cidades; o voo noturno em um trimotor; a feitura de um filme em condições mais que modestas (“Gente no domingo”, de que Wilder foi um dos argumentistas).
Em todo caso, essas “reportagens especiais sobre a vida como ela é”, que compõem a primeira parte do volume, evocam mais um cronista antenado e talentoso que já desenvolve o estilo que se tornaria célebre no cinema. Sua culminância talvez esteja no texto sobre sua incursão infeliz à roleta, em Monte Carlo, onde deixou os últimos tostões, quando acreditava estar prestes a fazer fortuna.
Na segunda parte, o tom pode mudar. Em 1926, diante de Asta Nielsen, monstro sagrado do cinema mudo, Wilder não esconde a emoção. Entre uma e outra pergunta de praxe – “o que um homem precisa ser para você o achar atraente?” – vem a descoberta de que ela agora quer se dedicar exclusivamente ao teatro, deixando de lado o cinema, já que os americanos destruíram o cinema alemão, diz.
“Asta Nielsen, a maior atriz de cinema do mundo, não ficará nas telas por muito tempo. Os milhares que tiveram o prazer de admirar sua brilhante arte serão reduzidos a centenas. E isso, creio eu, é um infortúnio”, escreveu Wilder.
Esse momento melancólico logo será superado quando acompanha um dia na vida do príncipe de Gales e desnuda o ridículo por trás dos rituais cortesãos. De novo ressurge o Wilder cineasta, com descrições cortantes de cenas desse mundo, como “Deus tenha piedade, tão chato, 'tãão' chato”.
A terceira parte, dedicada à observação de filmes, talvez seja a mais precária para o leitor contemporâneo, na medida em que a maior parte dos filmes e mesmo das estrelas se tornaram, com boas razões ou não, invisíveis.
Dietrich
No entanto, aqui e ali, pipocam observações sobre uma nova Marlene Dietrich, sobre um filme de Dieterle (quando ainda na Alemanha), ou mesmo sobre “Ouro e maldição”, o célebre filme de Stroheim, que Wilder vê com certa reserva – o que comprova que, desde então, já estava muito mais próximo de Lubitsch, seu mestre.Ao final, “Um repórter em tempos loucos” se revela um livro interessante para qualquer fã de Billy Wilder, de cinema e até da escrita.
No entanto, toda a ambiguidade da palavra “interessante” salta aos olhos do leitor. É uma virtude e um limite. Ao mesmo tempo que o talento do cineasta-roteirista se revela, não apaga o caráter episódico da maior parte de suas crônicas.
“BILLY WILDER: UM REPÓRTER EM TEMPOS LOUCOS”
• Organização: Noah Isenberg
• Tradução: Tanize Mocellin Ferreira
• Editora DBA (240 págs.)
• R$ 64,90