Em 13 de maio, a princesa Isabel (1846-1921) assinou a Lei Áurea e fez do Brasil o último país do Ocidente a abolir a escravidão. Havia muita pressão – interna e externa – para que o dispositivo legal fosse efetivado.
Nascido na atual cidade de Cachoeira (BA), o engenheiro negro foi fundamental para a implantação de infraestrutura moderna no país, a vitória do Brasil na Guerra do Paraguai (1864-1870) e, principalmente, para a consolidação da abolição.
Melancolia, autoexílio e morte
Porém, passados 10 anos da Lei Áurea, Rebouças encontrava-se em uma pequena casa em Funchal, cidade da Ilha da Madeira, em Portugal, extremamente decepcionado com os rumos que o Brasil tomou. Tal melancolia o levou à morte, considerada por muitos historiadores como suicídio.
“Ele pensava que a abolição tinha de ser complementada com alguma medida de democratização fundiária e viu a República como ação dos escravistas derrotados”, afirma a historiadora Hebe Mattos, professora titular da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
Há mais uma década, Hebe estuda a vida do abolicionista baiano. Analisou diários, artigos e correspondências de Rebouças com diferentes personagens da história brasileira, como Visconde de Taunay (1843-1899), Joaquim Nabuco (1849-1910) e o próprio imperador D. Pedro II (1825-1891).
Desse trabalho de pesquisa nasceu o livro “Cartas da África – Registro de correspondência 1891-1893” (Chão Editora).
Ao longo de 464 páginas, o leitor encontra cartas que Rebouças escreveu durante seu autoexílio em diferentes países da África, período pouco explorado por historiadores. Em quase dois anos, ele morou em Luanda, Moçambique e Transvaal, região que hoje pertence à África do Sul.
Para compreender o degredo voluntário de Rebouças, é preciso voltar um pouco na história. Filho de negra forra com um advogado autodidata que se tornou conselheiro de D. Pedro I (1798-1834), André cresceu em ambiente privilegiado em relação a companheiros abolicionistas como Luís Gama (1830-1882).
Junto do irmão Antônio, André ingressou na Escola Militar e se graduou em engenharia. Em 1863, devido ao prestígio de sua família e ao talento como engenheiro, foi encarregado pelo próprio D. Pedro II de supervisionar todas as fortalezas do Brasil.
Durante essa expedição, ele conheceu e se identificou com o Sul do país, para onde retornou e desenvolveu o projeto da Estrada de Ferro Curitiba-Paranaguá, até hoje considerada prodígio da engenharia.
Torpedo criado no front
Quando estourou a Guerra do Paraguai, em outubro de 1864, Rebouças se alistou como Voluntário da Pátria. Lutou em importantes conflitos, como o Cerco de Uruguaiana, onde conheceu pessoalmente o Conde d'Eu (1842-1922), marido da princesa Isabel, e a Batalha do Tuiuti, a mais sangrenta de todas.
No front da Guerra do Paraguai, o engenheiro desenvolveu um tipo de torpedo que foi muito útil para a vitória da Tríplice Aliança, composta por Brasil, Argentina e Uruguai.
Com o final do conflito, ele se filiou ao movimento abolicionista, integrando a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão e a Confederação Abolicionista, além de criar os estatutos da Associação Central de Emancipação dos Escravos.
Nessa época, viajou para os Estados Unidos a fim de conhecer a cultura norte-americana. Foi alvo de racismo, sobretudo no Sul do país. Aqueles episódios fizeram Rebouças se dedicar com maior afinco à causa abolicionista no Brasil.
Assinada a Lei Áurea, veio o golpe militar que implantou a República e a família real foi mandada para o exílio. Em solidariedade ao imperador, Rebouças decidiu deixar o Brasil. Partiu para Lisboa na mesma embarcação onde viajou Dom Pedro II.
Da capital portuguesa, o engenheiro seguiu para Cannes, na França, até chegar a Luanda, em Angola, e iniciar sua jornada na África.
“Em todas as biografias dele, a viagem à África é tratada somente em um livro, e, mesmo assim, de maneira muito rápida, deixando a entender que foi um período de depressão pelo qual Rebouças passou”, lembra Hebe.
No livro da historiadora, há correspondências do abolicionista com D. Pedro II e com o colega Joaquim Nabuco. Nas cartas, Rebouças refere a si mesmo como “africano” e “Negro André”.
Esses termos saltaram aos olhos de Hebe e despertaram a curiosidade dela a respeito do que Rebouças escreveu enquanto vivia nos países africanos.
Alvo de racistas
O trabalho da historiadora começou em 2007, quando ela teve acesso às primeiras cartas. A ideia inicial era fazer uma pesquisa para derrubar a imagem equivocada que se criou – “mesmo entre a elite intelectual”, conforme destaca – de que André Rebouças era um liberal que só passou a se preocupar com questões raciais depois de sofrer segregação nos Estados Unidos.
“Ele era, de fato, liberal e monarquista, mas já tinha preocupação com as questões raciais desde muito antes”, garante Hebe Mattos.
“Aqui no Brasil, o tempo todo a questão racial era usada contra ele, mesmo sendo um homem muito importante. Seus concorrentes, a todo momento, usavam linguagens racistas e xingamentos, seguindo a mesma linha para deixá-lo preterido”, continua.
Hebe achou melhor organizar os textos do abolicionista para publicá-los íntegra, em vez de fazer um livro analisando aquela correspondência.
“Quanto mais eu lia, mais me apaixonava pelo personagem e pela história, até perceber que as pessoas, em geral, também mereciam ler aquilo”, conta a autora, ao explicar o motivo de abandonar a pesquisa para se dedicar à publicação dos textos na íntegra.
O livro de Hebe Mattos permite ao leitor conhecer, por meio da correspondência, a personalidade e as ideias de André Rebouças.
Em carta ao então diretor do Jornal do Commercio, José Carlos Rodrigues, Rebouças afirmou: “Não posso compreender como um homem se escravize espontaneamente a trabalhar até as onze da noite, em raias de perder os olhos… para dar 20% ou 30% da renda a… milionários que não sabem que fazer da riqueza!!”.
República de revanchistas
Rebouças não acreditava que os republicanos eram movidos por ideologia, mas pelo revanchismo em decorrência da Lei Áurea. Escreveu a Antônio Ernesto Rangel da Costa: “Ah! Meu bom amigo! Se toda esta gente tivesse consciência, não se animaria nem a levantar os olhos para o céu, com modo de acordar a justiça divina e de receber num raio fulminador o merecido castigo de suas mentiras e de suas infâmias. Tudo pelo maldito dinheiro; para ganharem milhares de contos”.
As palavras, o pensamento e a história do engenheiro abolicionista cativaram tanto a historiadora Hebe Mattos que ela pretende lançar uma biografia dele. Contudo, garante que terá o cuidado de não deixar nenhuma lacuna ou margem para interpretações equivocadas a respeito de André Rebouças.
“CARTAS DA ÁFRICA – REGISTRO DE CORRESPONDÊNCIA 1891-1893”
. De André Rebouças
. Organização: Hebe Mattos
. Chão Editora
. 424 páginas
. R$ 86