escritora Andrea Taubman olha para a câmera

Andrea Taubman enviou a correspondência a Érica usando o nome Clô

Jean Yoshii/Divulgação

A psicanalista e escritora Érica Toledo estava zapeando os canais da televisão quando se deparou com uma entrevista da  escritora e palestrante Andrea Taubman, argentina radicada no Rio de Janeiro. Era 2018, e Andrea tinha acabado de receber o Prêmio Neide Castanha de Direitos Humanos de Crianças e Adolescente pelo livro “Não me toca, seu boboca”, que explica aos pequenos situações classificadas como abuso sexual.

“Na época, eu estava com uma filha ainda criança e fiquei encantada com o livro. Comprei, li e passei a indicar para pacientes pequenos que eu tinha e para mães com filhos pequenos”, lembra Érica.

As duas escritoras, no entanto, não chegaram a se encontrar, e Andrea sequer sabia que tinha uma grande admiradora em Belo Horizonte responsável por divulgar seu trabalho em solo mineiro. O primeiro contato das duas só ocorreu em 2020, quando Érica participou do projeto Sempre um Papo, que teve Andrea entre os espectadores.

Animada por ver a autora de “Não me toque, seu boboca” assistindo a seu bate-papo, Érica foi até o perfil de Andrea e mandou mensagem se apresentando. “Rapidamente, nós trocamos telefone e passamos a conversar por mensagens”, conta a psicanalista.
 
Escritora e psicanalista érica toledo olha para a câmera

Em "Faca de Ponta", Érica Toledo usa o heterônimo Iara

Donald Rayment/Divulgação
 

Revelações de Clô

A correspondência, no entanto, tomou rumo inesperado quando Andrea escreveu uma mensagem para Érica, assinando com o nome Clô. No texto, falava de situações envolvendo traumas, violência e abusos sexuais.

Sem saber direito como responder, Érica decidiu também mandar uma carta ficcionalizada, sob o nome de Iara e se mostrando sensível ao assunto por também ter passado por experiências semelhantes.

Andrea e Érica gostaram da ideia de se corresponder assim e mantiveram seus heterônimos a fim de ver onde aquilo daria. O resultado é o livro “Faca de ponta”, que reúne essa correspondência ficcionalizada entre as duas e será lançado pela Aletria Editora neste sábado (4/3), no espaço para eventos Casa da Floresta. Haverá ainda lançamento no Rio de Janeiro, em 8 de março.

Quem encontrar pela primeira vez as duas escritoras juntas certamente terá a impressão de que elas são amigas de longa data. Inclusive, no dia em que deram entrevista ao Estado de Minas, Andrea estava em Belo Horizonte, hospedada na casa de Érica e, em momento combinado, deixou a entrevista para participar de uma reunião no computador da amiga, sentindo-se completamente à vontade e ambientada no local.

Até junho passado, contudo, as duas não se conheciam pessoalmente. “Somos uma dupla que formou um único”, afirma Andrea. “Eu já tive essa experiência de escrever a dois, com diferentes autores. No entanto, foi a primeira vez que escrevi com alguém que eu não conhecia pessoalmente”.

Praticamente todo o livro foi feito antes de elas se encontrarem, o que torna fidedigno o argumento de “Faca de ponta”, que entrega ao leitor a correspondência entre duas mulheres desconhecidas, que se confessam uma à outra.

Os relatos abordam abusos sexuais, violência de gênero, depressão e a experiência que uma das mulheres tem com um filho transexual no intuito de jogar luz sobre os constrangimentos e agressões que mulheres enfrentam diariamente simplesmente pela sua condição feminina numa sociedade extremamente machista.

Violência desde sempre

O próprio título, retirado de uma das cartas assinadas por Iara, refere-se ao comportamento que as mulheres adotam desde cedo para se blindar. “Será que existe alguma mulher que não carregue faca de ponta contra os homens? Alguma de nós que se sinta plenamente segura?”, escreveu a personagem.

“A gente que é mulher convive com a violência desde sempre”, afirma Érica. “Neste carnaval, por exemplo, eu me peguei numa situação em que dizia para minha filha que ela tinha que aprender a dizer não, deveria ter a voz incisiva e empostada, e que ela sempre deveria olhar para o lado a fim de procurar pessoas que pudessem ajudá-la em alguma situação de perigo. Ou seja, eu estava ensinando para minha filha que ela vai carregar faca de ponta a vida inteira”, emenda.

As preocupações de Érica estão longe de beirar a insensatez. Afinal, somente em 2022, todas as formas de violência contra a mulher aumentaram no Brasil. De acordo com levantamento encomendado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 50.692 mulheres sofreram violência diariamente no ano passado. As agressões consistem em tiro, esfaqueamento, ameaça com arma de fogo, espancamento, tentativa de estrangulamento e insultos, humilhação ou xingamento.

“Em todos os lugares onde nós fomos divulgar o livro, depois que falávamos sobre ele, vimos mulheres chorando, dizendo que se identificavam com Clô e Iara”, conta Érica.

Existe, conforme ela diz, uma grande diferença no comportamento dos meninos e meninas ao longo do período em que vão se desenvolvendo, respectivamente, em corpos de homens e mulheres. “Enquanto os rapazes se sentem confiantes, as garotas passam a se sentir ameaçadas”, destaca Érica.

O trauma que vem de família

Um fator que contribui para o sentimento de insegurança entre garotas e mulheres é a transmissão psíquica do trauma. 

De acordo com a psicanalista, todas as pessoas, mesmo sem conhecerem os medos e traumas de seus pais, acabam herdando-os.
 
“Imagine, então, as meninas que nunca tiveram uma experiência de violência direta, mas que são filhas de mulheres violentadas e abusadas”, ressalta.
 
Ainda que aborde sentimentos e situações – lamentavelmente, diga-se – inerente às mulheres, “Faca de ponta” é uma leitura recomendada, sobretudo, para os homens. É deles, afinal, a responsabilidade pela atual situação de vulnerabilidade das mulheres brasileiras representadas por Clô e Iara.

“FACA DE PONTA”

•  De Andrea Taubman e Érica Toledo 
• Editora Aletria
•  168 páginas
• R$ 64
•  Exemplares à venda no lançamento e no site aletria.com.br
•  Lançamento neste sábado (4/3), das 11h às 15h, na Casa Floresta (Rua Silva Ortiz, 78, Floresta). Entrada franca. Informações: (31) 3296 7903 ou pelo @aletriaeditora, no Instagram.