A escritora Andréa del Fuego veste camisa preta, sentada, com o rosto de perfil

Leitora "meio fanática" do romance que analisará hoje em BH, Andréa del Fuego escreveu dissertação de mestrado sobre o livro de Nassar

Andre de Toledo Sader/Divulgação


“Andréa, felizes anos esses que vivemos.” Foi numa Flip de 2005 ou 2006, a dedicatória não traz data, que Marcelino Freire presenteou Andréa del Fuego com um romance que lhe causou um impacto tremendo: “Lavoura arcaica” (1975). Na época, e nos anos que vieram a seguir, ela dedicou inúmeras leituras à obra máxima de Raduan Nassar.
 
Primeira convidada da temporada 2023 do projeto Letra em Cena, com início nesta terça-feira (7/3), no café do Centro Cultural Unimed-BH Minas, Andréa vai ter uma conversa informal com o jornalista José Eduardo Gonçalves, idealizador do projeto. 
 
“Não é nada acadêmico, vou falar como uma fiel de 'Lavoura'”, comenta a autora de “Os malaquias” (2010), vencedor do Prêmio Saramago de Literatura. O encontro terá a participação do ator Odilon Esteves, que vai fazer leituras de textos de Raduan.
 
“Recebi o livro com muita paixão, e tive um baque imenso com a linguagem, com a intensidade da própria escrita”, conta. Assim que terminou a leitura, começou a reler o livro. Foi a primeira de várias releituras de “Lavoura”, obra inaugural de Raduan.
 
O escritor Raduan Nassar sorri

O escritor Raduan Nassar, hoje com 87 anos, vive recluso e deixou de publicar obras inéditas

 Paulo Pinto/Divulgação -31/05/16
 

Conhecido como um dos maiores estilistas de língua portuguesa, ele publicou apenas três títulos: o supracitado romance, a novela “Um copo de cólera” (1978) e a coletânea de contos “Menina a caminho” (1997). Esta reúne contos dos anos 1960 e 1970 e um único texto, “Mãozinhas de seda”, da época do lançamento da obra. Há décadas parou de escrever – dedicou-se, por muitos anos, à sua fazenda no interior de São Paulo.

Cinema: outra gramática

Sua novela e seu romance ganharam versões cinematográficas: “Um copo de cólera” (1999), de Aluizio Abranches, e “Lavoura arcaica” (2001), de Luiz Fernando Carvalho. “Gosto muito dos filmes, mas sempre acho que o cinema tem sua própria gramática. Não espero ter o contato do livro através do filme. É como uma nova conversa.”
 
André, narrador de “Lavoura arcaica”, nos revela em primeira pessoa a dissolução de sua família, de agricultores austeros. No relato, são enfatizadas sua relação com o pai de moral rígida, a mãe amorosa e a paixão incestuosa pela irmã Ana.
 
“O livro é também uma parábola do filho pródigo com a diferença de que, na 'Bíblia', ele sai da família, acaba comendo a comida dos porcos e volta aceitando as leis da casa. No caso do André, no primeiro momento, ao voltar, ele não se submete ao pai”, comenta Andréa.
 
Para ela, o romance traz várias camadas: “A gente pode pensar no corpo, e também em questões do tempo, que são belíssimas. E há a densidade filosófica, a começar pelas epígrafes: uma traz um verso de 'Invenções de Orfeu', de Jorge de Lima, e um pedaço do 'Alcorão' sobre as mulheres”, cita Andréa, que se considera uma leitora “meio fanática” do romance.
 
Atriz Simone Spoladore sorri, de olhos fechados,  em cena do filme 'Lavoura arcaica'

Atriz Simone Spoladore em cena do filme 'Lavoura arcaica'

Videofilmes/divulgação
 
 
A relação da autora com “Lavoura arcaica” não se limitou às sucessivas leituras, que fazem do romance um de seus livros de cabeceira. Em 2021, ela defendeu pela USP a dissertação “Lavra e linguagem em ‘Lavoura arcaica’”. “Depois de cursar filosofia, resolvi fazer um mestrado e fiquei pensando que livro leria sem parar durante dois anos. 'Lavoura arcaica' foi o 'disco' da minha vitrola, que a cada vez que se lê traz sempre uma nota nova.”
 
Na dissertação, a autora fez uma aproximação entre a obra de Raduan e o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty. “Eu quis fazer um dueto, já que cada um em sua área pesquisa com muita intimidade a linguagem.”
 
Ao se retirar da literatura, Raduan, hoje com 87 anos, passou também a viver de forma mais reclusa, concedendo poucas entrevistas. Andréa não chegou a conhecê-lo. “O Marcelino (Freire) chegou a deixar uma cópia da minha dissertação, depois de defendida, na portaria do prédio dele.” Ela não teve notícias se ele leu sua análise.
 
Mas conta uma história interessante sobre o autor. Há muitos anos, Andréa estava em um festival de literatura em Portugal e se encontrou com o escritor português Almeida Faria. Na conversa, quando ela falou sobre “Lavoura arcaica”, o autor pediu um segundo e lhe trouxe o próprio livro, “A paixão” (1965).
 
A narrativa, ambientada numa Sexta-feira da Paixão, é protagonizada por um personagem também de nome André. Almeida Faria contou a Andréa que, muitos anos antes, o próprio Raduan bateu-lhe à porta de casa, em Portugal. “E agradeceu a ele por 'A paixão', que o tinha inspirado a escrever 'Lavoura arcaica'”.
 
A escritora brasileira deixou seu encontro com o autor português de posse de mais uma dedicatória. No exemplar de “A paixão” com que presenteou Andréa, Almeida Faria escreveu: 'Eis aqui, o antepassado do André, da Andréa e de 'Lavoura arcaica'”.

LETRA EM CENA. COMO LER RADUAN NASSAR

Com Andréa del Fuego. Nesta terça-feira (7/3), às 19h, no Café do Centro Cultural Unimed-BH Minas, Rua da Bahia, 2.244, Lourdes. Entrada franca. Inscrições devem ser feitas pelo site Sympla.