Milton Nascimento deixou os palcos. Skank pendurou as chuteiras. Pato Fu comemora seus 30 anos e Jota Quest roda o país com a turnê dos 25. Evoé, jovens artistas!, como diz Chico Buarque na canção “Paratodos”. Tudo se recicla, e a nova safra de Minas continua no topo da música brasileira. Djonga, de 28 anos, é linha de frente do rap. Marina Sena, de 26, estrela do pop contemporâneo. KVSH, de 29, astro da eletrônica. E Sidoka, de 24, fenômeno do trap.
Nicolas Paolinelli tirou seu nome de guerra da expressão budista que significa “aquele que trouxe algo nunca visto”. Também conhecido como Doka, ele mais parece ter pulado do mangá ou de algum game para palcos e telinhas. Rosto supertatuado, óculos juliet fininhos de lentes escuras (febre entre desportistas nos anos 1980, mania da turma do funk), boné, touca, capuz e aquela gola usada por esquiadores para proteger o pescoço, esticada até os olhos. Luvas, tênis coloridaços, joias.
Realmente, o bem-humoradíssimo Sidoka é mesmo algo difícil de ver por aí. O jovem que acredita em ETs garante: Nicolas não criou um personagem para os palcos e redes sociais. “Sidoka é tudo o que o Nicolas é, uma parte de mim. Acordo, olho no espelho: é o Doka”, diz o cantor e compositor.
FALA, SIDOKA:
Sidoka, "mãos de tesoura"
A marca registrada (ou melhor, uma delas) são as luvas com pontas dos dedos cortadas. Coisa cara, da Louis Vuitton, é passada na tesoura sem dó, sob o olhar incrédulo de vendedoras. Ele conta que as luvas servem, desde sempre, para esconder a vergonha do intenso suor nas mãos.
Convidado para campanhas fashion de grifes esportivas e afins, ele próprio desenha estampas das roupas lançadas por sua marca, a Intactoz.
Se ele “ostenta” Louis Vuitton, também exibe “óclins” do mercadão popular da Oiapoque, em BH. Recentemente, foi convidado a criar camisa para o Cruzeiro, seu time. Lamenta que o projeto foi engavetado. E avisa: não desistiu de sua azul-celeste, não.
Sidoka inventou seu próprio estilo. Tornou-se astro do trap, gênero derivado do rap caracterizado por batidas marcadas, timbres graves, sintetizadores da eletrônica. Letras sobre sexo, violência, racismo e drogas são crônica do “corre” das periferias. Surgido nos EUA no início dos anos 2000, o trap estourou no Brasil mais recentemente.
Com sete anos de carreira, mensalmente Sidoka é ouvido por 3,4 milhões de pessoas no YouTube e Spotify. Tem quase duas centenas de músicas. Em meados de fevereiro, lançou o sétimo álbum, “Sensitivo”, com 14 faixas. Promete para esta sexta-feira, 10 de março, o segundo volume.
O músico diz que o disco duplo é seu projeto mais pessoal: “Taquei mais sentimento.” Amadureceu, virou pai. Mas as letras sobre quebrada, sexo, drogas e amor mantêm o pique adolescente.
Cruz no pescoço
Sidoka se considera pessoa sensitiva, conta que sempre teve fortes intuições. “Acredito no sobrenatural, sinto a presença (de algo maior).” Criado em família católica, mostra, durante a entrevista por vídeo, o terço com a cruz de madeira pendurado no pescoço, dado pela mãe, Ana. “Eu não posso tirar de jeito nenhum”, avisa.
Revela sua forte conexão com a energia humana, seja ela alegria, paz ou inveja. Quando pressente a maldade, se afasta, mas sem cultivar rancores. “Não sou um cara que reza, olho para o céu e agradeço.”
Comparando cada religião a um aquário, filosofa: o peixe nada apenas ali dentro. Se você não se limita ao aquário, tem o mar inteiro, formado por diferentes fés, para se aventurar. “Não tenho religião, mas tenho proteção forte”, diz.
Também não acredita em coincidências, acredita que tudo em sua vida “já estava escrito”. No mesmo dia em que se demitiu no estágio da Prefeitura de Belo Horizonte, sentindo-se rejeitado pela maioria dos colegas na seção, se encontrou com o rapper BP, que lhe deu a oportunidade de participar de evento no espaço Growers, no Bairro Anchieta.
Sidoka cantou, Djonga ouviu e um tempo depois o chamou para gravar a faixa “Ufa” do disco “Menino que queria ser Deus”, em 2018.
O disco de Djonga estourou. E meio mundo quis conhecer o menino daquele flow impressionante, autor da letra dizendo que ninguém bota algema em seu verso.
No mesmo dia da demissão e do show, dona Ana havia ligado para o filho, preocupada com a ameaça de despejo, precisando urgentemente de saldar o compromisso.
Funk, rap, trap e bom humor
Dali em diante, a carreira do garoto do Aglomerado da Serra, criado pela mãe com muita dificuldade, deslanchou. Cria também do funk e do rap, Sidoka aposta no bom humor. É desbocado, craque no free style, letras improvisadas.
O que mais impressiona é o talento para encaixar versos, rimas e palavras no ritmo veloz de seu canto falado. Costuma ser tão rápido que deixa o ouvinte “lá atrás”. Aliás, fãs fazem memes divertidíssimos com o jeito dele de cantar.
Sidoka conta que sempre buscou a sua forma particular de fazer música. Diz que a base de seu trap, de seu rap e de seu flow está no falar do mineiro, que “come” sílabas, quando não a metade das palavras. Ou seja, construiu seu estilo customizando o bom e velho mineirês, temperado com as gírias de favelas e periferias de BH. Um de seus bordões parece até coisa de vovó: Credo!!!
Na verdade, chamar o trap de subgênero do rap não traduz o que vem ocorrendo no mundo inteiro. “O trap cresceu de forma absurda”, comenta Sidoka, orgulhoso de fazer parte da cena mineira que chama a atenção do país e até do mundo – em 2020, Djonga foi o primeiro brasileiro indicado ao respeitado Bet Hip Hop Awards, nos EUA.
“Meu trap é o funk do rap”, resume. Há algum tempo, cantar trap em baile funk de BH era problema. “O pessoal ouvia a nossa música e se afastava”, relembra. Mas as coisas mudaram. “É bonito ver o trap e o funk coligados”, diz ele. “O Brasil precisava desta versatilidade”. E completa: “Tenho orgulho de fazer parte disso. Pode falar que a gente é trapper. No fim de tudo, nós (sic) é tudo rap.”
Treino no escuro
O flow veloz de Sidoka, o estilo e as rimas são fruto de trabalho duro, “de muito treino”, garante. Ele costuma criar de madrugada, de preferência com o capuz sobre os olhos. Sente liberdade assim. “Gosto de rimar no escuro.”
A conexão entre pensamento e rimas é tão veloz que ele próprio se intriga com o significado do que escreveu. Gosta de inventar palavras. Fãs brincam que nem Sidoka, às vezes, decifra o que rimou. “Foda-se o Aurélio/ Inventei dicionário”, diz a letra de sua “Hoje eu não me sinto mal mais”.
O trapper passou dificuldade na vida, fome. Dona Ana penou para criar os dois filhos no Aglomerado da Serra. Mas Sidoka não faz música de coitadinho. Diz que tudo o que cantou, lá atrás, se transformou em realidade.
Tem casa e carro, pode ajudar a mãe, usa as roupas que quer, viaja. Afirma que a filha não passará pelo que ele enfrentou. No Aglomerado, viu meninos como ele morrerem por causa das drogas e da violência. Perdeu o melhor amigo assassinado a tiros ao ser confundido com um garoto metido em confusão.
Nicolas estudou no Pandiá Calógeras e no Estadual Central, deixou o colégio no segundo ano. Trabalhou para ajudar em casa, viveu a realidade das ruas. “O rap bateu na minha porta”, diz. “Posso ir pra Suíça, mas sempre serei underground, lançando minhas músicas no Soundcloud”, afirma, referindo-se à plataforma voltada para artistas independentes que abrigar o que há de novidade.
Flórida e Califórnia
Em fevereiro, Sidoka se apresentou em Miami, Orlando e San Francisco, nos Estados Unidos. Planeja agora ir a Nova York, rimar em inglês, quem sabe se aventurar no reggaeton.
A “gringa”, como ele diz, está de olho no moço. O rapper Gucci Mane, pioneiro do trap, propôs que fizesse parte do cast de sua gravadora. O mineiro recusou, pois o americano queria 70% dos ganhos, restando só 30% para ele, o autor.
Diz ter respeito por Mane, mas vender seu trabalho assim, “nem para o Papa”. Com sete anos de estrada, aprendeu a gerenciar a carreira, por meio da produtora Intactoz, depois “de tomar tapa na cara demais”.
“Vou simplificar/ Eu num tinha nada/ E quem nada conhece o mar”, rima Sidoka em uma das faixas de “Sensitivo”.
Bebê a bordo
Foi bonito de ver o mar de gente ovacionando o trapper no festival Planeta Brasil, no Mineirão, em 2022, quando ele subiu ao palco com a filha Renatinha, de meses, no colo.
Foi o show mais emocionante de sua vida, confessa. A plateia cantava “Louis V, menina linda”, que ele fez para a mulher, Mariana.
Já é de lei: a multidão virtual de fãs de Sidoka vai passar a madrugada do próximo dia 10 de olho na telinha, pois ele adora soltar as novidades em horários inusitados.
Tem canção de ninar para Renatinha? Não vale spoiler. Mas a bebê é estrela: seu nascimento “bombou” no Twitter, ganhando parabéns de Fátima Bernardes no programa “Encontro”. O bordão “que isso renatinha” viralizou, virou hashtag e até página de fãs no Instagram...
Corujíssimo, Sidoka não se encabula ao ser perguntado se deixará a filhota ouvir letras de funk e trap calientes, como as dele, quando ficar maior. Diz que vai conversar com ela sobre tudo, mas sem proibições. “Agora, namoradinho entrar em casa de sapatênis, isso não entra não”, avisa o senhor Nicolas Paolinelli.
DOKA EM NÚMEROS
1,6 milhão
de ouvintes mensais no Spotify
1,8 milhão
de inscritos no YouTube
360 milhões
de plays de “Louis V, menina linda”, “Não me sinto mal mais” e “Mi'adama” no YouTube e Spotify
569 milhões
de visualizações no YouTube
ÁLBUNS
“Elevate” (2018)
“Doka language” (2019)
“Merci” (2020)
“Futuruz” (2020)
“Espelho infinito” (2020)
“SHH..” (2021)
"Sensitivo" (2022)
“SENSITIVO”
. Disco de Sidoka. Volume 1, com 14 faixas
. Disponível nas plataformas digitais
. Nesta sexta (10/3), lançamento do volume 2