A atriz Letícia Colin e a diretora Julia Rezende tinham acabado de gravar e lançar o longa “Ponte aérea”, em 2015, quando começaram a conversar sobre relacionamentos, mais especificamente sobre como as pessoas estão vivendo seus afetos hoje. Da conversa, surgiram questões como “o que é traição nos relacionamentos atuais?”, “como os acordos entre casais estão sendo feitos?” e “é possível viver uma relação não monogâmica?”.
Obcecada com esses questionamentos, Julia decidiu chamar os roteiristas Patricia Corso e L.G. Bayão - que haviam trabalhado com ela em “Ponte aérea” - para pensarem em uma história a partir dessas perguntas.
Assim nasceu “A porta ao lado”, filme que chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (9/3). No elenco, além de Letícia, estão Bárbara Paz, Dan Ferreira e o belo-horizontino Tulio Starling.
A trama acompanha o casal Mari (Leticia Colin) e Rafa (Dan Ferreira). Os dois levam uma vida sossegada e feliz, embora tenham que lidar com contrariedades comuns no cotidiano da maioria das pessoas.
Família
Mari, por exemplo, não suporta ter que encontrar sua família conservadora - e um tanto ou quanto hipócrita, conforme sugere em determinado momento do filme. Os relacionamentos extraconjugais que o pai manteve ao longo da vida deixaram traumas em Mari, e a complacência da mulher com o marido infiel esfriou a relação dela com a mãe.
Rafa, por sua vez, não revela sua origem. A única menção que faz ao passado é quando diz ter sofrido diferentes tipos de discriminação por ser negro. O que o espectador sabe sobre ele é que Rafa é um bem-sucedido agente do mercado financeiro - sendo, inclusive, responsável por comprar o restaurante onde Mari trabalha como chef.
A tranquilidade do casal, no entanto, é abalada quando Isis (Bárbara Paz) e o marido Fred (Tulio Starling) se mudam para o apartamento ao lado. Os dois fogem completamente do estereótipo que se tem do casal perfeito.
Isis é mais velha que Fred e mantém um relacionamento extraconjugal com outra mulher. O marido, aparentemente, não se importa, e também não esconde suas aventuras fora do casamento. O relacionamento aberto, aliás, é um acordo do casal.
Em pouco tempo, os dois casais se tornam amigos, e o estilo de vida de Isis e Fred - inicialmente reprovado por Mari - passa a interessar a personagem de Letícia Colin. Os olhares trocados com o vizinho e a interação entre os dois nas redes sociais acabam evoluindo para uma aventura amorosa entre Mari e Fred.
É a partir desse momento que os personagens se mostram mais densos e complexos. Mari, que sempre condenou a infidelidade do pai, passa a ter um amante fixo e não considera grave sua atitude, até desconfiar que Rafa poderia estar traindo-a também.
Já Fred, desde o início do filme, é apresentado como um homem desconstruído. É sensível, esotérico e com a mente aberta. Contudo, desde que começou a se relacionar com Mari, passou a procurar somente ela, dedicando-se a uma espécie de monogamia extraconjugal, o que vai de encontro à ideia de relacionamento aberto. Em relação a Isis, apresenta comportamentos machistas.
Contradições
“O que esses personagens têm de mais rico são as ambiguidades e contradições”, afirma a diretora Julia Rezende. “A Mari, por exemplo, vem de um contexto familiar em que essa situação de relações extraconjugais gerou muito sofrimento. Mas, ao mesmo tempo, ela é atravessada pela vontade de experimentar alguma coisa que está fora das linhas do contrato que tem com o marido. Essa ambiguidade faz parte da vida. Às vezes, o que a pessoa acredita que é o certo nem sempre é o que ela consegue fazer”, diz.
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Embora questões sobre relacionamento sejam o ponto central da trama, há debates sobre outros temas, como casamento interracial, machismo e aborto. Diferentemente da abordagem de muitas peças, livros, novelas e filmes que abordam a interrupção da gravidez, em “A porta ao lado” é Isis quem não quer ter a criança, enquanto Fred tenta convencê-la do contrário. (Alerta: spoiler a partir do próximo parágrafo.)
“É o corpo dela que está em jogo. Por isso eu gosto muito do momento em que o Fred fica sabendo que Isis aborta e diz: ‘Você não me perguntou’. E ela responde: ‘Eu te perguntei, só não te obedeci’”, cita Julia.
“Fred, assim como os homens em geral, esperava que Isis fosse ceder ao desejo dele. Mas ela se impõe, talvez de maneira um pouco violenta, porque faz o aborto e avisa para ele depois. Mas é a vontade dela que prevalece”, observa a diretora.
O filme não entrega ao espectador uma fórmula para os relacionamentos. Até porque, independentemente de como se relacionam, todos os personagens acabam sofrendo. A proposta, portanto, é refletir sobre a monogamia compulsória.
“De maneira geral, ninguém estabelece um acordo: ‘ah vamos ser monogâmicos’. É implícito, é simplesmente como é. A gente nem reflete muito como é. E eu acho que a monogamia tem essa falsa impressão de controle, de que você pode controlar o desejo do outro, como se você também não fosse desejar alguém fora da relação”, pondera Julia.
Machismo
É justamente esse controle que Rafa e Fred querem ter sob as suas respectivas esposas. O primeiro parece, no início da trama, ser extremamente generoso - ele comprou um restaurante para a esposa, vale ressaltar -, porém, ele usa dessa generosidade para tentar dominá-la.
Já Fred tenta controlar as decisões da parceira, agindo como um verdadeiro “esquerdomacho” (termo usado para se referir aos homens que se dizem progressistas, mas que agem de forma machista e violenta com as mulheres).
“Acredito que os personagens masculinos estão ali justamente para dar as nuances do machismo”, afirma Tulio, que dá vida a Fred. “O machismo está na nossa cultura. O homem sempre teve um respaldo e uma tutela social para ser infiel, enquanto à mulher sobrou uma solidão, um aprisionamento e o trabalho doméstico. Portanto, não é porque um homem é sensível, dialógico ou que busca diluir as relações desiguais de poder que ele não será atravessado - sobretudo em situações-limite - por essas questões que estão em nossa cultura.”
“Estamos lançando perguntas”, complementa Julia. “Essa ideia de que o desejo estará direcionado unicamente para a pessoa com quem você quer passar o resto da vida é algo que deve ser questionado e repensado. Não sei se isso realmente funciona. E acredito que nós já vivemos mentira e hipocrisia demais (para considerar essa ideia como verdade absoluta)”, conclui.
“A PORTA AO LADO”
(Brasil, 2023, 113 min.) De Julia Rezende, com Letícia Colin, Bárbara Paz, Dan Ferreira e Tulio Starling). Em cartaz a partir desta quinta-feira (9/3), no UNA Cine Belas Artes (Sala 1, 15h30 e 20h30; especificamente nesta quinta não haverá a sessão das 20h30) e Cidade 8 (13h50 e 18h30).