Prima Gabriela, a menina que gostava de roubar biscoitos. A imensa caranguejeira diante de Tia Lisa e seu chinelo quase certeiro. A empregada Tina. O menino diante do primeiro cadáver de sua vida, homem baleado na beira da estrada. O quilombola Barandão em busca de justa vingança. O “tortinho” Zé Martin, agregado da família. Naninha, mistura de parente longínqua e empregada. Lili, viúva recente, morena sacudida. O pedinte da esquina de Rua Timbiras com Avenida Bias Fortes.
Personagens dos contos de José Newton Araújo no livro “Retalhos de fazenda” (Editora Quixote+Do), todos eles são protagonistas de vidas ordinárias em cidades pequenas ou em algum canto da metrópole. O mundo aparentemente comezinho desta gente será mesmo sem graça, tediosamente banal?
“Hoje sei o que é o inferno de não esquecer”, diz o narrador de “Corruptelas”, autor de covardia na meninice, ao se deparar com Zé Martin, sua vítima, já adulto.
A “boa intenção” do jovem padre de aposentar, contra a vontade, o ensimesmado Nonato e a invisibilidade que coube ao sacristão, depois de tantos anos de dedicação, passam longe de ser acontecimentos “ordinários”.
“Nonato era, no entanto, portador de uma alegria não revelada. Estava onde queria estar. Seu copo não era meio vazio, era quase todo cheio de satisfação íntima. Ao abrir e fechar a igreja, tinha um prazer secreto: ser quase o dono das chaves, mas não de um imóvel qualquer. Certa feita, por mero agrado, uma freira disse que ele tinha as chaves da casa do Senhor. E completou, teatralmente: as chaves do Reino”, revela José Newton no conto “Poeira da chuva”.
O filósofo da barbearia
E o que dizer de Euclides, o Mudinho, barbeiro e cabeleireiro da pequena cidade? “Quero não, marido surdo e mudo dá azar”, decretam as meninas-moças. “Fígaro sem bodas naquele confim de mundo”, resume o contista. Só que não...
Euclides, digamos, é quase filósofo. “Sentava-se à porta da barbearia, seu dom de observar tecia histórias de todas as coisas que via na praça, fosse gente, passarinho, tempestade ou escuridão”, conta José Newton, observador tão atento quanto seu personagem, o “rapaz privado da barulheira do mundo”.
“Figurava, no detalhe, cada transeunte que percorria a feirinha de frutas e verduras, o armazém, a sapataria, farmácia, igreja, cartório. Sua imaginação ficcional desenhava os dramas e prazeres do fazendeiro a cavalo, da costureira apressada, do cachaceiro conversador, da beata arrogante e até do cachorro manco de nascença, ele também filho de Deus”, prossegue o autor.
Moça à beira de um ataque de nervos
E Lígia? Ela é caixa, “espécie em extinção nos bancos”, em suas próprias palavras. Aguenta o tranco da rotina na agência como pode – tranquilizantes, analgésicos, “às vezes uma boa Cannabis”. Lígia sabe que o banco “quer se livrar do lixo” – idosos, analfabetos, pessoas com deficiência e a turma que dá despesa porque não usa o terminal eletrônico.À beira do burnout (“nem sei o que é isso”, confessa), a bancária é a “máquina de carne e osso” que conversa, olha nos olhos da gente incapaz de lidar com aquelas teclinhas. Assediada pelo cliente “ilustre”, tem de engolir a denúncia do homem à gerência. Acaba “encostada” no setor de serviços internos. O cliente tem sempre razão...
“Se ainda tenho sonhos? O trabalho indesejado levou quase todos. Em minha nova mesa, sem clientes, às vezes paro, olho os papéis, olho o teto, as paredes e os colegas, sem lhes dirigir palavra. Olho sobretudo o vazio que me resume”, desabafa Lídia conosco.
José Newton faz do leitor o confidente de todo mundo. Somos testemunhas também. De segredos eróticos, por exemplo. Há o menino entre o desejo e a culpa, a saia da prima levantada. “Prosseguir como? Sempre fui um cagão”, ele nos diz.
O rapaz da república em Ouro Preto e a moça, sozinhos, na Semana Santa. “Nossa música entoada em gemidos primitivos, eu transpondo os umbrais daquele corpo branco, os sinos de todas as igrejas começando a repicar a ressurreição de um estudante negro, em plena Sexta-feira da Paixão”.
Vírgula, ponto e fim!
Chegamos até a acompanhar o diálogo angustiado entre o ponto e a vírgula. Os coitados temem desaparecer. “Se desligamos o computador o texto fica salvo automaticamente e nós também”, diz a vírgula. “Agora é tarde, ele está acordando”, responde o ponto, referindo-se ao próprio José Newton.
Também pudera: o autor dedicou sua vida a compreender a alma humana. José Newton Araújo é mestre em filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais, doutor em psicologia pela Universidade Paris-Diderot (Paris VII), professor da PUC Minas e da UFMG. Aluno da poeta Dagmar Braga na oficina literária Letras e Ponto, este mineiro de Dionísio, acostumado a textos acadêmicos, fez bem em se aventurar na literatura. Saiu-se muito bem em seus “contos de aprendiz”.
TRECHO
“Guardo essa lacuna. Se fosse historiador, iria escarafunchar sua vida. Iria atrás dos mistérios e sofrimentos que ele carregava nas mãos calejadas e no peito. Descobriria que, quando jovem, além de esculpir com rara destreza a madeira bruta, ele também usou o machado como arma. Nascido numa comunidade quilombola, teria vingado os irmãos assassinados por fazendeiros que invadiram suas terras. Depois, fugiu, perambulou por vários recantos, descendo o Jequitinhonha, até chegar à minha pequena cidade, sem biografia e sem documento, apenas buscando trabalho”
. Conto “É só o que sei dele”
"RETALHOS DE FAZENDA"
• De José Newton Araújo
• Contos
• 140 páginas
• Editora Quixote Do
• R$ 45