“Estes recentes eclipses do Sol e da Lua não nos pressagiam nada de bom”, diz o Conde de Gloucester em uma das primeiras cenas de “Rei Lear”, peça de William Shakespeare. A fala do personagem sugere o desenrolar da trama escrita no início do século 17.





De fato, na peça, um rei um tanto ou quanto fanfarrão, cheio de rompantes de fúria e meio descontrolado, abdica do trono e divide o reino entre as três filhas, com uma única condição: elas devem fazer uma declaração de amor para ele. 

As mais velhas, Goneril e Regan, logo tomam a palavra e, num lirismo singular, exaltam o pai, colocando-o como o único motivo de satisfação em suas vidas. A caçula, Cordelia, por sua vez, vai na contramão das irmãs. Ela garante seu amor, mas pondera dizendo que não precisa bajular ninguém para mostrar seu sentimento.

A resposta de Cordelia - talvez a mais sincera entre as filhas - foi como uma bala de prata no ego do pai. E, claro, não agradou nem um pouco o monarca, que, num acesso de fúria, deserdou a caçula e dividiu o reino entre Goneril e Regan.





Assim como toda a obra de Shakespeare, “Rei Lear” se tornou atemporal por abordar com maestria questões centrais da experiência humana, como ganância, individualismo, justiça social, moral e ética. 

Contradições

Lear, o rei que abdicou do trono, é apenas um dos personagens que acumulam em si todas essas questões. Ao abrir mão do poder, sua ideia era deixar de lado as responsabilidades da realeza, mas continuar desfrutando das regalias do cargo. 

É isso, inclusive, que motiva sua briga com Goneril e Regan. Ainda nos primeiros atos, ele expressa às duas seu desejo de manter um exército particular de 100 homens, algo completamente fora de cogitação em um sistema político cuja base sempre foi a manutenção de um único exército, e não milícias espalhadas pelo reino.





As filhas Goneril e Regan também carregam em si as contradições e dilemas, nas suas devidas proporções, similares aos do pai. Ao ascenderem ao trono, refutam a ideia de Lear levar consigo homens armados e justificam isso a ele, evidenciando seu comportamento descontrolado e seus acessos de fúria injustificáveis. 

No entanto, ao longo da peça, as duas vão se perdendo em maldade - sobretudo em suas atitudes para com o pai - e fazendo de tudo para expandir o próprio poder, visto por elas como uma forma de afirmação individual.

Paralelamente, há uma segunda trama. Edmund, filho bastardo e mais novo do Conde de Gloucester arma um atentado contra a vida do pai e do irmão, a fim de herdar o título e as riquezas da família. Em seguida, disputa o amor das duas princesas, colocando-as na condição de rivais.





Já Cordelia, que parece ser uma boa pessoa e a personagem mais sensata da trama, coloca-se muitas vezes em situações nas quais se cala para não externar nenhum sentimento ruim. 
 

Rodrigo Lacerda fez questão de publicar explicações sobre Shakespeare e sua época no posfácio do livro

(foto: Renato Parada/Divulgação)
 

“Esse silêncio terá um preço”, afirma o escritor e tradutor Rodrigo Lacerda, responsável pela mais recente tradução de “Rei Lear”, lançada no final de 2022 pela Editora 34, em edição bilíngue.

“O mundo não para pra ouvir o silêncio. As coisas vão acontecendo e, muitas vezes, Cordelia não reage à altura dos acontecimentos. Com sua recusa em fazer a declaração ao pai, por exemplo, por melhores que tenham sido suas intenções, ela não cumpre o ritual da corte, revelando-se imatura para governar”, diz ele. 

“Afinal, o monarca tem que falar a linguagem do cerimonial, tem que cumprir os rituais. Não pode dizer: ‘Ah, eu sou rei, mas sou um rei legal; por isso não quero nenhuma formalidade’. Não dá. O mundo do poder exige certo decoro e formalização das coisas”, observa.




 
• Leia também: Peça com Mariana Muniz, apresentada em fevereiro, misturou Shakespeare e Jair Bolsonaro

Traduções

“Rei Lear” já havia sido traduzida para o português por Carlos Alberto Nunes (1897-1990), Millôr Fernandes (1923-2012), Barbara Heliodora (1923-2015) e Lawrence Flores Pereira. Embora considerasse todas essas traduções boas, Lacerda não se identificava com nenhuma delas. “Na minha boca elas não encaixavam direito”, comenta.

Começou, então, traduzindo alguns trechos para apresentar a eventuais alunos quando fosse convidado a dar aulas sobre o texto de Shakespeare, algo que é recorrente em sua rotina. “Mas aí veio a pandemia, e eu me vi trancado dentro de casa, nos Estados Unidos, porque minha esposa tinha ido para lá estudar, e eu fui com ela, e sem nada para fazer. Então mergulhei de cabeça nesse projeto”, diz.

Foi, de fato, uma imersão na peça de Shakespeare. Por vezes, a esposa de Lacerda o ouvia gritando e corria assustada até ele para ver se estava tudo bem. Quando chegava, via que se tratava apenas de uma leitura dramática que ele estava fazendo. 





“Eu realmente comecei a enlouquecer”, admite ele, entre risos. “É porque eu queria fazer uma tradução que pudesse ser lida como qualquer outro livro e que também funcionasse para ser falada. Para isso você precisa dar uma entonação para a fala do personagem e entrar na emoção dele”, afirma.

A primeira versão da tradução ficou pronta em novembro de 2020, três meses depois que iniciou o trabalho. Ele submeteu o projeto à editora, que, de pronto, aceitou-o. No entanto, depois de decidirem que “Rei Lear” sairia em edição bilíngue, Lacerda pediu para retornar ao texto, a fim deixá-lo mais próximo do original. Trocou palavras e expressões que havia utilizado, comparou sua tradução com as de Carlos Alberto Nunes, Millôr, Barbara Heliodora e Lawrence e, depois de um ano, entregou a versão final de sua tradução.
 

Juca de Oliveira na peça "Rei Lear", em 2014. Ator revelou que o personagem de Shakespeare foi o mais desafiador de sua carreira

(foto: João Caldas Filho/divulgação)

Zoológico humano

Além da atenção para manter o texto mais fiel possível ao original, Lacerda também se preocupou em inserir somente notas de rodapé que fossem estritamente necessárias para a compreensão da trama, como a explicação do termo “Tom, o louco de Bedlam", constantemente usada por diferentes personagens para se referir aos pacientes do Bethlem Royal Hospital. 





A instituição, criada na época de Shakespeare e que existe até hoje, abrigava mendigos e doentes psiquiátricos, ao mesmo tempo em que servia como espécie de zoológico humano, deixando os internos em jaulas à exibição ao público, a quem era permitido provocá-los cutucando com varas para que tivessem acessos de fúria diante dos espectadores.

Observações e contextualizações mais profundas estão no posfácio do próprio tradutor. É lá que ele explica, por exemplo, como Shakespeare se apoiou em referências históricas de diferentes épocas para tornar sua trama atemporal.

“Embora apareça em crônicas supostamente históricas da Inglaterra, o personagem Rei Lear parece ser mais mitológico do que histórico. Acho que, para manter essa história num plano mítico, Shakespeare combinou várias referências de períodos diferentes para que o leitor ficasse sem saber exatamente em que momento da história aquele enredo se encaixa. Ele faz isso nos planos religioso e político”, afirma.





De acordo com Lacerda, no plano religioso, o dramaturgo se apoia em referências celtas, greco-romanas e católicas, que foram as crenças predominantes na Inglaterra ao longo do tempo.

Já no plano político, Shakespeare lança mão do direito germânico medieval, no qual as questões deveriam ser resolvidas em duelo; e da representação do tribunal de um sistema judiciário mais parecido com o que existe hoje, com os juízes constituídos, júri, réu e promotoria (ele faz isso na cena em que Lear julga as filhas Goneril e Regan).

“Você não sabe muito bem que tipo de monarquia é aquela. É uma monarquia primitiva, renascentista ou é um rei da antiguidade? Não fica muito claro”, observa Lacerda. “Ele (Shakespeare) vai sobrepondo referências históricas contraditórias para que o enredo da peça continue no plano mítico”, diz.
 
 

Mundo em desagregação

De maneira geral, “Rei Lear” mostra o mundo em desagregação, sendo substituído por um novo universo de valores. Esse mundo em desagregação é o mundo do imaginário medieval representado por Lear, onde o rei era equivalente a Deus. 





Na concepção de Shakespeare, existia uma escala hierárquica muito bem definida e rígida, na qual não havia possibilidade dos cidadãos mudarem de posição. Essa hierarquia, no entanto, é quebrada pelo próprio protagonista, ao abrir mão do poder. 

A atitude do rei, portanto, é uma alegoria para mostrar que o tradicional sistema político estava sendo substituído por uma nova sociedade, um novo universo de valores de caráter mais renascentista.

“É um universo onde o valor de cada um não está determinado pelo seu nascimento, e sim pelo seu valor individual. Isso parece ótimo, mas, para a peça, o problema é que você desorganiza a hierarquia rígida, cria uma mobilidade social muito maior (o que é bom), mas, nas brechas dessa nova sociedade, vem a ganância desmedida e o individualismo exacerbado”, afirma Lacerda.

“As duas filhas que herdam o trono não tinham um compromisso real com a coletividade, com a paz e a prosperidade do reino. Elas só queriam o poder pelo poder, assim como o vilão, filho de Gloucester. Ele é um homem inteligentíssimo, muito hábil, guerreiro, mas não serve para ser rei, porque só quer o poder para o gozo pessoal, e não para zelar pelo bem da coletividade”, observa o tradutor. 





“Isso posto, percebe-se que a peça trata de um mundo que está desmoronando com coisas boas e ruins, ao mesmo tempo em que outro mundo está emergindo, também com coisas boas e ruins”, conclui.

(foto: Reprodução)
“REI LEAR - EDIÇÃO BILÍNGUE”

• De William Shakespeare
• Tradução: Rodrigo Lacerda
• Editora 34 (448 págs.)
• R$ 99

compartilhe