Obra em  Acrílico sobre tela, 80 x 127 cm, de Abdias Nascimento, chamada 'O vale de Exu'

"O vale de Exu" (Nova York, 1969) é um dos trabalhos expostos no Inhotim

Museu de Arte Negra/Ipeafro/Divulgação
 

"No processo de escravização, uma das maiores crueldades que fizeram com os negros foi apagar a religiosidade deles. Abdias, portanto, quis retomar essas ideias de uma cultura que foi apagada pintando os orixás, os símbolos sagrados e as linguagens antigas de diferentes povos do continente africano, como os adinkras e a escrita egípcia"

Douglas de Freitas, curador



Em 1968, depois de realizar a primeira exposição do acervo do Museu de Arte Negra no Rio de Janeiro, o artista plástico, ator, dramaturgo e militante político Abdias do Nascimento (1914-2011) ganhou uma bolsa da americana Fairfield Foundation para pesquisar entidades culturais negras. 

Inicialmente, ficaria apenas dois meses nos Estados Unidos, mas, quando estava prestes a voltar, recebeu a notícia de que o então presidente brasileiro Artur da Costa e Silva havia editado o AI-5 e institucionalizado a repressão no Brasil.
Com receio de voltar e ser preso por motivos políticos novamente - 30 anos antes, ele passou uma temporada no Carandiru por se posicionar contra o Estado Novo -, Abdias decidiu estender sua permanência nos EUA.

Foi a melhor decisão. Já nos primeiros anos, estabeleceu uma rede de contatos com artistas, pensadores e militantes norte-americanos e, em pouco tempo, passou a conhecer todo o circuito do movimento negro de lá. 

No ano seguinte, em 1969, realizou sua primeira exposição individual no The Harlem Art Gallery, em Nova York. E ainda faria mais 14 mostras individuais em diferentes cidades do país, até 1975.

Obra em Acrílico sobre tela, 102 x 60 cm de Abdias Nascimento, chamada '306 West 81st'

"306 West 81st" (Nova York, 1969): registro do exílio

Museu de Arte Negra/Ipeafro/Divulgação

Recusa da língua inglesa

Ao longo do período em que esteve nos EUA, Abdias se recusou a aprender o inglês. “Não quero ser colonizado novamente”, respondia a quem lhe perguntava o motivo de não aprender o idioma.

Isso, no entanto, não atrapalhou os planos da Universidade de Nova York de convidá-lo para ser professor de culturas negras das Américas em um centro de estudos porto-riquenhos. Abdias passou a dar aulas com um tradutor ao lado.

“Em relatos que fez, revelou estar impressionado em ver como a coisa fluiu para ele lá nos EUA. Em carta, escrita quando ainda estava no primeiro ano no país, disse estar muito feliz por ter vendido uma obra, algo que nunca tinha feito no Brasil”, conta o curador do Instituto Inhotim, Douglas de Freitas.

Freitas é responsável pela curadoria da mostra “Terceiro ato - Sortilégio”, que será aberta neste sábado (18/3) e segue em cartaz até 6 de agosto, em Inhotim. A exposição conta com aproximadamente 180 obras e dá continuidade ao projeto da instituição em parceria com o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro) de revisitar a trajetória de Abdias do Nascimento em quatro mostras - as duas primeiras foram realizadas em 2021 e 2022. 
 
 
“No segundo ato, as obras se concentravam mais no teatro de Abdias, onde se discutiam questões de identidade e representatividade”, lembra Douglas. “Já o terceiro ato é sobre o período em que Abdias se exilou nos EUA.”

Obra em  Acrílico sobre cartão, 26 x 34 cm, de Abdias Nascimento, chamada 'Riverside 1'

"Riverside 1" (Nova York, 1969)

Museu de Arte Negra/Ipeafro/Divulgação
Vivendo em um local onde sequer sabia falar o idioma e sem nenhuma perspectiva de voltar para a terra natal, Abdias passou a se dedicar à pintura. Era, talvez, a maneira mais eficaz que ele encontrou para se comunicar.
 
Foi durante este período no exílio que pintou as telas "Exu Black Power n. 2" (1969), "O vale de Exu" (1969), "Oxum em Êxtase" (1975), entre outras que integram “Terceiro ato - Sortilégio”.

A mostra é dividida em seis núcleos: introdução, símbolos das religiões africanas; contexto histórico do exílio; o trabalho como professor universitário, obras de artistas afro-brasileiros reunidas pelo próprio Abdias e representações dos orixás.
 
 

Núcleo Exu

O primeiro núcleo, que introduz os visitantes, é dedicado a Exu. O orixá é uma espécie de mensageiro entre os seres humanos e o transcendente e, muitas vezes, é descrito como travesso, fiel e, sobretudo, justo.

“Exu é esse orixá das comunicações e de abertura dos caminhos. Ele está muito presente nas pinturas de Abdias. Por isso, como estamos falando de como Abdias buscava se comunicar através da pintura fora do Brasil - e o fato de estar no estrangeiro significa que ele estava em outro caminho -, achamos que era importante trazer isso simbolicamente para a exposição”, afirma Douglas.

Obra em Acrílico sobre tela, , 153 x 102 cm, de  Abdias Nascimento, chamada 'Oxum em êxtase'

"Oxum em êxtase" (Buffalo, EUA, 1975)

Museu de Arte Negra/Ipeafro/Divulgação
Dedicar a abertura da mostra a Exu foi a maneira encontrada pelo curador de recorrer ao orixá para que ele pudesse abrir os caminhos dos visitantes, dando-lhes sorte e prosperidade.

Na sequência, estão reunidas as telas que apresentam o espectador aos símbolos das religiões africanas, principalmente umbanda e candomblé. Nessas obras, os pontos riscados - símbolos religiosos desenhados com o objetivo de chamar ou firmar a entidade no plano terreno - ganham evidência. 

Estão lá, por exemplo, os tridentes de Exu, a cruz de Oxalá, o triângulo representando a Força Divina, e o sol para chamar Oxalá e a lua para Oxum.

Em seguida, vêm os núcleos “Nova York: Início do exílio” e “Professor universitário”, que abordam, respectivamente, os primeiros impactos que o artista teve com a nova cidade e as pesquisas que desenvolveu no centro de estudos porto riquenhos. 

Há também, neste último núcleo, um catálogo no qual ele analisa os orixás de cada religião, no intuito de saber qual o equivalente de cada um nas demais religiões diaspóricas.

“Todo esse trabalho de pesquisa que Abdias fez impactou na pintura dele. Tem telas onde Elegbara, que é o equivalente a Exu na santeria caribenha, está representado”, aponta o curador.

Núcleo Hélio Oiticica

O quarto núcleo da exposição (intitulado “Artistas afro-brasileiros”) conta com obras que Abdias reuniu de Hélio Oiticica (1937-1980), Mestre Didi (1917-2013), Rubem Valentim (1922-1991), Anna Maria Maiolino, entre outros artistas.

“Terceiro ato - Sortilégio” termina com o núcleo “Orixás: Concepção da vida e filosofia do universo”, que, conforme o próprio nome sugere, reúne obras tendo os orixás como destaque.
 
Nessas criações, Abdias mostra que, da perspectiva das religiões de matriz africana, os orixás são elementos da vida terrena - Iemanjá, por exemplo, é o mar; Oxum é a água do rio, e Iansã é o vento. 

“Ele via a religião como eixo cultural forte da África”, afirma Douglas. “No processo de escravização, uma das maiores crueldades que fizeram com os negros foi apagar a religiosidade deles. Abdias, portanto, quis retomar essas ideias de uma cultura que foi apagada pintando os orixás, os símbolos sagrados e as linguagens antigas de diferentes povos do continente africano, como os adinkras e a escrita egípcia”, explica.

Com o fortalecimento de pautas antirracistas, as obras de Abdias chegam para propor novas formas de pensar a comunicação dos povos que foram espalhados pelo mundo e como essa herança pode ser retomada.

“Ele busca essa reconexão com a origem a partir da religião, dos orixás, das linguagens antigas. É bem a ideia de religare”, comenta o curador.

“TERCEIRO ATO - SORTILÉGIO”

• Obras de Abdias do Nascimento, Hélio Oiticica, Mestre Didi, Rubem Valentim e Anna Maria Maiolino, entre outros.
• Deste sábado (18/3) a 6 de agosto, no Instituto Inhotim (Rua B, 20, Fazenda Inhotim, Brumadinho). De quarta a sexta-feira, das 9h30 às 16h30; sábados, domingos e feriados, das 9h30 às 17h30. R$ 50 (inteira) e R$ 25 (meia).
• Mais informações pelo site inhotim.org.br.